The Beatles
Free as a bird e Real love
As canções póstumas

Por Alexandre Nagado*


Durante o projeto Anthology, que contou a trajetória dos Beatles através de depoimentos dos próprios envolvidos, veio a idéia de que os três remanescentes à época produzissem algo inédito para acompanhar o documentário. E, ao invés de música incidental, como foi cogitado, resolveram gravar novas canções. Mesmo com a ausência de John Lennon, todos os quatro estariam novamente juntos em novas gravações, graças à tecnologia digital.

Para isso, duas velhas demo tapes de Lennon foram entregues por Yoko Ono para que Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr trabalhassem. O resultado veio na forma das canções "Free as a bird" e "Real love", músicas de elevada beleza. Consta que outras faixas foram trabalhadas, mas o resultado não agradou ao trio, que preferiu lançar oficialmente apenas as duas canções citadas. O que, em se tratando de material inédito dos Beatles, não seria pouca coisa.



LIVRE COMO UM PÁSSARO
Free as a bird era uma canção inacabada de Lennon, registrada em 1977 em uma fita caseira por um gravador colocado em cima do piano. A música era ainda como um rascunho, um teste, e coube aos outros três trabalhar em cima, completando a faixa.

Com partes vocais solo de John, Paul e George, é um caso raro de divisão da voz principal entre os três. E consta que Ringo também junta sua voz no coro, fato pouco comum na discografia deles. Novos versos, pequenas mudanças em acordes e um arranjo instrumental rico e elaborado deram um tratamento digno à gravação, que teve a assinatura criativa dos quatro Beatles, gerando o único single composto desta maneira.

O trabalho foi acompanhado pelo produtor Jeff Lyne, o grande mago que conseguiu limpar o frágil som vindo da fita e organizar tudo para que a gravação soasse uniforme. Ainda assim, a voz de John soa um pouco distorcida e distante. O que não era problema nenhum, pois ele gostava de experimentar com distorções e efeitos na voz durante várias gravações. Na parte instrumental, além do piano original de John, Paul gravou mais partes de piano e também tocou baixo e violão. George contribui com violão, guitarra solo normal e slide. E Ringo, à frente da bateria completou a primeira gravação oficial dos Beatles, quase 25 anos depois da separação.

Emoldurada por um vídeo clip premiado que colava imagens alusivas à todas as fases e várias canções dos Fab Four, a música infelizmente não alcançou grande sucesso comercial. Não faltaram críticas de pessoas sobre o oportunismo da empreitada e sobre uma suposta inferioridade em relação aos clássicos dos anos 60.

Uma outra questão ainda pode ser levantada: Teria John gostado de ver "Free as a bird" gravada? Ele mesmo não finalizou a música quando teve chance, nem cogitou gravá-la oficialmente. Ou ele teria, de algum modo, previsto que essa música só valeria a pena ser completada com uma pequena ajuda dos seus amigos? Sem respostas para tais perguntas, o trio ainda gravaria outra faixa, esta sim a derradeira canção da banda.



AMOR REAL
Diferente de "Free as a bird", a canção seguinte, que entrou no vol. 2 do CD Anthology, era uma obra completa de John, composta e gravada em sua casa em 1979. Coube aos outros encaixar uma instrumentação igualmente rica que ornasse bem a música "Real love", isso em 1995.

Paul e George gravaram harmonias vocais para enriquecer a canção, lembrando muito a combinação de vozes que os tornou célebres no passado.

Para o acompanhamento, Paul tocou dois baixos, sendo um deles o usado por Bill Black na histórica gravação de "Heartbreak Hotel", de Elvis Presley. Ringo novamente estava na bateria e George na guitarra. Dois violões, tocados por Paul e George, também foram acrescentados. E os três Beatles adicionaram vários efeitos percussivos sutis, finalizando a derradeira gravação oficial da banda. O resultado, como em "Free as a bird", dividiu opiniões.

Posteriormente, um clip feito a partir de colagens de todas as fases do grupo, incluindo tomadas feitas durante as gravações, fechou com chave de ouro o histórico de criações do grupo. O vídeo, com sua edição final mostrada no encerramento do disco bônus da DVD Box Anthology, funciona como uma despedida, um fecho digno e emocionante. Tudo o que sairia depois seriam coletâneas ou diferentes versões dos clássicos, como o Let it be... Naked.



REFLEXÕES CRIATIVAS

No documentário Anthology, Paul comenta que não foi tão divertido fazer "Real love", pois a música já estava completa e eles atuaram mais como um acompanhamento para John. Talvez Paul estivesse nostálgico de uma fase inicial dos Beatles, quando ele freqüentemente criava junto com o parceiro. Pela metade da década de 60, os dois amigos foram se distanciando e compondo cada vez menos juntos. Desde o começo, existiam músicas escritas por um ou pelo outro em separado, mas a parceria criativa era muito forte também. E, pelo acordo que eles firmaram, enquanto existissem os Beatles, todas as músicas seriam assinadas em dupla. Mas já não eram criações coletivas, exceto pelos arranjos. E não são poucos os exemplos de clássicos Beatles que são criações individuais.

"Across the Universe" sempre foi uma música solo de John, sem nenhum outro Beatle junto. Idem para "Yesterday", de Paul e "Within you without you", de George. Em muitos casos, os outros três (ou menos) eram realmente "apenas" um acompanhamento para o compositor/cantor da música. É assim em "The long and winding road", "Something", "For no one" e tantas outras.

Essa discussão sobre o quanto as músicas seriam "faixas Beatles genuínas" pode até ser pertinente, mas essas músicas não foram gravadas de modo tão diferente de tantos clássicos da fase áurea do quarteto. A criação, mesmo em "Real Love", foi coletiva se lembrarmos que os três remanescentes trabalharam o arranjo instrumental que emolduraria a música de John. O que é muito mais do que aconteceu em muitos sucessos que aprendemos a admirar.

Há depoimentos de fãs e pesquisadores colhidos na época que diziam que "não era a mesma coisa" comparar essas músicas "póstumas" com as gravações clássicas. Obviamente que saber que John estava morto há anos quando a música foi trabalhada para se tornar uma faixa Beatle faz uma grande diferença. Também influi toda a expectativa que se criou em torno dessa reunião. Nada iria corresponder à expectativa, por melhor que fosse. Friamente falando, muito do fascínio que os clássicos causam vem do fato do ineditismo na época de seu lançamento e de uma paixão que transcende técnica e até sensibilidade musical.

Essa nostalgia, claro, barraria qualquer obra-prima de ser reconhecida como tal, pelo simples fato de que os velhos hits ficam no mesmo patamar de pureza intocada e eternamente idealizada que nossas lembranças de infância, do primeiro amor, etc... Tudo que nos conquista profundamente em uma época mais ingênua tende a ofuscar novas expectativas.

Musicalmente falando, - e é isso o que importa - as duas canções foram uma pequena amostra do que os Fab Four poderiam estar produzindo se estivessem todos vivos, ou que teriam feito nos anos 70 (quando Lennon compôs as duas faixas) ou ainda nos anos 90 (quando elas foram finalizadas).

Eles estariam fazendo, certamente e como sempre, música de boa qualidade.


Alexandre Nagado também é colaborador do site Omelete.








Free Web Hosting