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The Beatles
As cordas falam!
Acordes perfeitos de George, Paul e John
Eles formaram um quarteto maior, sem relativos. As
vezes imagino se os recém apresentados a eles
compartilham da mesma paixão que os fãs antigos,
aqueles que curtiam tudo em vinil, antes do techno,
grunge, punk, heavy, progressivo e tantos outros ismos
que foram gerados para alimentar essa incessante
fornalha anárquica chamada Rock'n'Roll. Digo, depois da gravação digital, dos efeitos mirabolantes
de estúdio e do apelo adrenalínico das raves ainda há
quem se interesse por pesquisar os longíquos anos
sessenta a partir de "She Came in Through the Bathroom
Window" por exemplo? Ainda bem que sim, como podem
comprovar os mlhares de leitores virtuais desse nobre
site.
Isso se deve em grande parte à solidez da
fórmula musical proposta pelos quatro já no lançamento
de Please Please Me, quando as bandas de guitarras
eram consideradas fora de moda. Reza a lenda que o
disco foi gravado em questão de poucas horas, quase
como um desabafo orgásmico. Entretanto, vale lembrar
que foi também um disco registrado por profissionais
da guitarra da época, embasados em centenas de horas
de shows em espeluncas de Hamburgo e Liverpool que os
habilitaram como verdadeiros mestres da execução
intuitiva do estilo. Naquele tempo os Stevie Vais e
Joe Satrianis da vida tocavam nos Shadows, Ventures
e... nos Beatles.
É interessante notar um comentário de George Harrison
à revista Guitar Player: "Eu sou uma espécie de
guitarrista das selvas". Nosso jungle boy elétrico,
mesmo alegando rudeza com o instrumento,
milagrosamente trouxe ao mundo dos vivos pérolas
irretocáveis como os solos de Michelle, Till There Was
You, Day Tripper, Let it Be e Something entre outros
clássicos. Munido de um simplório equipamento: uma
Gretsch modelo semi acústico, no início sem pedais,
diretamente pulgada em um amplificador Vox ( tendo
também utilizado modelos de doze cordas - mais uma de
suas inovações - além de guitarras Danlectro,
Epiphone, Gibson e Fender ) ele abdicou de lançar uma
prole bem maior de músicas próprias em favor da
parceria Lennon & McCartney, da qual funcionou como
fiel escudeiro durante toda a carreira messiânica da
banda.
Através de riffs e solos que permanecem presos
na memória musical do mundo, George foi, ao lado de
Jimi Hendrix, precursor de uma miscelânea de efeitos,
muitos deles utilizados em larga escala na música
subsequente como por exemplo a segunda voz num solo (
hoje eletrônicamente disponível nos módulos à venda no
mercado sob o nome de pitch shifter ) em And Your Bird
Can Sing; um impressionante timbre semelhante ao
chorus moderno em Fixing a Hole, mais de uma década
antes do efeito ser inventado; pedal de volume em I
Need You; gravações de solos girados ao contrário em
Tomorrow Never Knows, I,m Only Sleeping e o clima
pré-noise das guitarras de Helter Skelter ( quase
trinta anos antes do Nirvana ). Isso sem falar no
descobrimento do efeito distortion, ou overdrive (
cujos créditos também são reclamados por John Lennon )
na introdução de I Feel Fine e, um pouco mais tarde,
também lançado em Think for Yourself ( a primeira,
seguramente, lançada antes de Satisfaction, dos
Stones).
Um capítulo a parte na história de Tarzan Harrison é
o seu trabalho com slide guitar, o qual, infelizmente,
não chegou a ser desenvolvido com os Beatles mas se
tornou brilhantemente popular em sua carreira solo,
com pelo menos dois clássicos: Give Me Love e My
Sweet Lord. George, citarista aluno do mestre Ravi
Shankar, foi o responsável pela união das escolas
musicais do oriente e ocidente, celebrada em Within
You Without You, espetacular obra de fusão que
constitui assunto para outra matéria , já que acredito
ser essa alquimia a própria essência do som de
guitarra tal como ficou conhecido na história dos
guitar heroes, de Jimi Page e John McLaughlin a Dave
Gilmour e Richie Blackmore.
Mas se George Harrison imortalizou-se por tornar a
guitarra mensageira de uma música dentro de outra
música, Paul McCartney foi quem revolucionou o baixo
elétrico ao liberta-lo do ostracismo rockabilly,
quando ainda era usado no formato cello: enorme e
inadequado para os padrões pop. Scott Moore,
guitarrista de Elvis e Chuck Berry faziam a cabeça de
quem se ligava em solos mas nenhum baixista em
especial chamava a atenção do público até então.
Quando Paul apareceu com seu célebre Hofner,
executando harmonias intricadas como as de I Saw Her
Standing There e All My Loving , ao mesmo tempo em que
cantava com total naturalidade e empolgação, foi como
se a luz chegasse às trevas num instante.
E o beatle
que não queria ser baixista ( só assumiu o posto em
substituição a Stuart, cujo histórico diz que como
baixista se saia um excelente pintor ) mesmo assim,
deixou sua marca inconfundível: um timbre forte, às
vezes seco e abafado ( Being for the Benefit of Mr
Kite! ) outras, pulsante ( Rain, Paperback Writer )
mas sempre, como seria óbvio em qualquer coisa que ele
fizesse, melódico ( Something, You Never Give Me Your
Money ). O mesmo músico ainda foi capaz de nos
brindar com solos de guitarra absolutamente especiais
como os de Ticket to Ride e Taxman.
Já o poeta beatnik John Walrus Lennon, mesmo sem dar
muito na pinta, também deixou a sua inestimável
contribuição para a glória da guitarra beatle.
Fã apaixonado de blues americano, seu estilo aparece nas
guitarras de The Ballad of John e Yoko, na steel
guitar de For Your Blue e no solo jazzístico de Honey
Pie, entre outras. John, que tornou famosa a marca
Rickenbacker ( a qual lançou nos anos noventa um
modelo com seu nome idêntico ao que ele usava no
início da fama ), foi defensor intransigente da
tradição guitarrística do rock, mesmo quando o estilo
parecia ensaiar uma guinada em direção às aventuras
sinfônicas. Sua harmonia de rock básico utilizando
pestanas com variação no dedo mindinho ( provávelmente
adaptada de algum skiffle ignorado ) surgiu em I Saw
Her Standing There para ser copiado ad nauseum, sendo
novamente utilizada várias vezes pela banda em seus
suspiros finais, durante o projeto Get Back.
Aliás, quando se fala em final, muitos dos fãs se remetem a
apoteótica orquestra de guitarras de Carry That
Weight, precedendo The End, uma espécie de tampa para
uma panela em ebulição. Ali estão, em formato de
pergunta-resposta, os três guitarristas solando
juntos, cada um num timbre diferente, de forma que
cada estilo podesse ser distinguido e apreciado
separadamente. Naquele diálogo maravilhoso George,
Paul e John lançaram ao espaço seus últimos bends
enquanto beatles.
E, apesar de lendáriamente o
relacionamento entre eles não estar dos melhores
naqueles dias, as notas soaram agradecidas, como se
dissesem atavés de escalas, vibratos, graves, médios e
agudos, um emocionado thank you.
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