The Beatles
Os nus e os vivos


Quando uma publicação como a "New Musical Express" resolve quebrar um jejum de 33 anos ocupando a sua capa com uma fotografia dos Beatles, isso já é uma de muitas vitórias da edição de "Let It Be... Naked".

Quando milhares de jornais, revistas e de sites em todo o Mundo, muitos também com capas, desenterram os "quatro de Liverpool", sem que a EMI tenha mexido uma palha, a não ser enviar um exemplar do disco para as redacções, isso é, notoriamente, outra vitória da edição.

Quando milhares de fãs, também em todo o Mundo, mergulham a fundo em "Naked", tentando descortinar todas as diferenças e, acima de tudo, identificar as fontes, isso é mais do que uma vitória, é um gigantesco orgasmo.

Quando daqui a umas semanas a EMI começar a fazer as contas e a sorrir com os milhões que entram nos cofres, isso é mais do que uma vitória, é a realização de um objectivo. O que quer dizer que, cumprindo uma tradição que já vem dos anos 60, os Beatles voltam a espalhar felicidade no Natal. É obra, decorrido já tanto tempo.

E o Mundo precisava deste disco? Estava à espera dele? Para se perceber "Let It Be... Naked", é necessário recuar três décadas, quando se estava a expirar o prazo de validade da banda de Liverpool e Paul McCartney ensaiava infrutiferamente a bóia de salvação. Mas o virus estava instalado e a morte anunciada. Para evitar enfadonhos (há livros com centenas de páginas sobre esta matéria), retenha-se apenas que as 33 bobinas de "Let It Be", que já tinha sido "Get Back", foram arrumadas a um canto e os quatro partiram para o que, para muitos, é o melhor álbum dos Beatles, "Abbey Road", editado como canto do cisne em Setembro de 1969, o último gravado pelos Fab Four.

Quando, finalmente, no ano seguinte, se deu a implosão dos Beatles, um dos seus protagonistas, Allen Klein, que tinha sido chamado por Lennon para substituir Brian Epstein, contra a opinião de McCartney, pegou nas bobinas de "Get Back/Let It Be" e encomendou uma produção a Phil Spector, nome que - sublinhe-se - não era (é) despiciendo no mundo da música. Spector aplicou-lhe uma versão light do que sabia fazer, o famoso wall of sound.

Nenhum dos Beatles gostou especialmente do resultado final (que acabaria por ser o último álbum editado, em Maio de 1970), em particular Paul McCartney, mas manda a verdade reconhecer que clássicos da música do século XX, como "Let It Be" e "The Long And Winding Road", mesmo contra a vontade do seu autor, têm a assinatura de Spector e ponto final.

Com as mortes de John Lennon e de George Harrison, Paul McCartney tomou o controlo controlado dos Beatles e da Apple e tem-se divertido nos últimos tempos a rescrever a História. Já o tinha feito com "Yellow Submarine", fá-lo agora com "Let It Be" e há quem diga que se prepara para se debruçar sobre "Magical Mystery Tour". "Let It Be... Naked", título inventado por Ringo Starr, como já tinha feito outros nos anos 60 como "A Hard Day's Night", chega agora como Paul McCartney gostaria que tivesse sido em 1969, sem os efeitos especiais de Phil Spector, ou seja, sem coros femininos, sem violinos. É o regresso às origens, à fórmula vencedora e única das três guitarras e da bateria, agora com a ajuda preciosa e poderosa do órgão de Billy Preston.

"Let It Be... Naked" é, sem dúvida, um fabuloso disco de guitarras, de excelentes canções que, acomodadas num novo alinhamento, ganham uma dimensão numa antes experimentada. A nova homogeneidade, com a inclusão de "Don't Let Me Down" e o chuto para fora de "Dig It" e de "Maggie Mae", oferece uma coerência e uma lógica que dão razão à frase premonitória de 1970: this is a new phase Beatles album.

E o Mundo precisava deste disco? Estava à espera dele? A crer no que se tem escrito lá fora, a resposta é afirmativa. O circunspecto "The Times" diz que o álbum é "melhor do que perfeição", a "New Musical Express" escreve que é o "melhor álbum de sempre de garage rock", o "Daily Telegraph" diz que é o "álbum da semana", a "Mojo" dá-lhe a nota máxima, a "Word" prevê que os Beatles sejam também "ícones do século XXI" e a "Record Collector" comenta que "Let It Be... Naked" é o "álbum que os Oasis tentam fazer há 10 anos".

Os fãs exultam, embora os mais velhos não consigam nem queiram substituir "Let It Be" no coração - afinal, foi esse o álbum que amaram na devida altura e do qual não se divorciam. Podem é arranjar uma amante.

E o grande atractivo dessa nova amante - a derradeira vitória - é a conquista de novas gerações, de novos fãs que nem sequer eram ainda vivos quando John Lennon foi assassinado em 1980. Na senda da colectânea "1", álbum inscrito no Guinness como um dos mais vendidos de sempre na história da música, "Let It Be... Naked" está aí para ser sobretudo consumido pelos mais jovens, à procura de novas satisfações não preenchidas. E como diz a "New Musical Express", os Kings Of Leon, os Jet, os Darkness devem estar "roídos de inveja".

E se me permitem uma nota pessoal, eu respondo a John Lennon: "Desculpa, John, o sonho não acabou".

Luís Pinheiro de Almeida



DESCUBRA AS DIFERENÇAS
Mesmo para um fã empedernido não é fácil descobrir as diferenças entre "Let It Be" e "Let It Be... Naked".
Eis uma tentativa:


Get Back - mesma versão de Spector, mas sem diálogo e sem a reprise final do single.

Dig A Pony - versão do telhado *, com edição da entrada de Spector e correcção do segundo verso.

For You Blue - limpeza dos overdubs de Spector, realce das harmonias vocais.

The Long And Winding Road - versão inédita de estúdio, cartão vermelho para tudo quanto Spector fez originalmente. Até a letra está ligeiramente alterada.

Two Of Us - mesma versão de Spector, mas sem os diálogos.

I've Got A Feeling - mistura de duas versões do telhado no que resultou numa nova.

One After 909 - versão do telhado.

Don't Let Me Down - mistura de duas versões do telhado no que resultou numa nova.

I Me Mine - versão editada de Spector, sem orquestra Across The Universe - versão tempo original, apenas com tamboura e tom tom.

Let It Be - versão de Spector com solo de guitarra original de George.

* concerto no telhado da Apple que deveria constituir o álbum "Get Back".

Texto publicado originalmente no jornal BLITZ (www.blitz.pt)









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