Beatles e Beach Boys

Essa é a breve (???) história de uma banda que teve grande responsabilidade na metamorfose pela qual o rock passou nos anos 60 - especialmente em sua metade. Essa história se centra nessa metamorfose, seus bastidores, e tenta recriar um pouco desse contexto. Até certo ponto, ela gira em torno dos Beatles, porque basicamente o rock dos anos 60 orbita em torno destes. Esse texto não se pretende definitivo.

Em vários aspectos -dentre eles, vendas de discos e posições nas paradas, os Beatles nunca tiveram verdadeiros rivais dentre seus contemporâneos. Em outros - popularidade, força e longevidade de seu catálogo, o consenso geral aponta os Rolling Stones como o eterno senão para declarar-se definitivamente o quarteto inglês como A Maior Banda de Rock de Todos os Tempos.

Mas durante um período específico - a "revolucionária" metade dos anos 60 - e num quesito específico - a inovação, diversificação e quebra de barreiras da estética sonora roqueira - os Beatles tinham rivais consideráveis numa banda -americana, por incrível que pareça: os Beach Boys. A propósito, os irmãos Brian (baixo, piano), Carl (guitarra) e Dennis Wilson (bateria), seu primo Mike Love (vocais), e mais um amigo da vizinhança, Al Jardine (guitarra, que por um curto período no princípio de carreira foi substituído por David Marks).

Desde o início, a figura chave do grupo era Brian, primogênito dos Wilson -e atualmente o único dos três irmãos vivo. Como grande parte dos gênios que reviveram das cinzas o rock nos anos 60, surgido em um ambiente aparentemente infértil para qualquer indivíduo criativo: a pasmaceira dos infinitos subúrbios de cerquinhas e moradores completamente brancos, o esforço combinado de lavagem cerebral das high schools, igrejas quase fundamentalistas e meios de comunicação no auge da Guerra Fria, uma sociedade racialmente segregada. Na Inglaterra do pós-guerra com sua falta de perspectivas, orgulho nacional ferido e memória fresca dos bombardeios nazistas, parece natural -ao menos hoje em dia- que a qualquer momento pudesse explodir uma "revolução jovem". Mas nos EUA, que a longo prazo só haviam lucrado com a Guerra, vivendo a glória do American Way Of Life, com sua felicidade movida a novos utensílios domésticos -especialmente a televisão- qualquer contestação era a negação daquela vida perfeita e merecia um rótulo automático: comunismo. E para um típico WASP ("White, Anglo-Saxon, Protestant" ou "branco, anglo-saxão e protestante") o comunismo era pior que o demônio (mesmo considerando o quanto eles odiavam/odeiam o capeta...

Quando os irmãos Wilson (assim como Bob Dylan, Lou Reed, Frank Zappa e mais tantos outros) ainda eram pré-adolescentes, esse ambiente sofre uma perturbação: surge o rock 'n' roll. Porém até o final da década de 50, o rock já havia sido completamente assimilado e silenciado. Chuck Berry, preso; Elvis, no exército; Little Richard, em meio a delírios religiosos; Buddy Holly, Eddie Cochran (e não só eles), mortos; outros tantos, atirados no ostracismo. Quando a febre passou, os pais respiraram aliviados, certos de que havia sido mais uma mania passageira e a música destinada ao público jovem voltava às mãos de astros descartáveis, discípulos de Pat Boone (cantor branco, célebre por sua versão aceitável, flácida, pasteurizada e "família" do rock 'n' roll).

Mas aquele gênero musical tinha qualquer coisa de especial e apesar de parecer morto, havia espalhado sementes em lugares improváveis (por exemplo, a Inglaterra, aonde ao passarem filmes da era de ouro do rock, estes fizeram certos delinqüentes juvenis como John Lennon e Keith Richards acharem suas vocações na vida). Um desses lugares improváveis foi justamente Hawthorne, Califórnia.

Os Beach Boys gravaram seu primeiro sucesso local no final de 61 ('Surfin'. Uma curiosidade é que apenas Dennis realmente surfava). Em 62, no mesmo ano em que Bob Dylan e -do outro lado do Atlântico- os Beatles também faziam suas primeiras gravações "pra valer", o grupo assina um contrato com a Capitol e inicia sua grande série de hits com 'Surfin' Safari', seguido de um LP do mesmo nome, sucedido no ano posterior por 'Surfin' U.S.A' e 'Surfer Girl', também respectivamente acompanhados por LPs homônimos.

Como dá para notar, no princípio, a música da banda era praticamente monotemática. Assim como os Beatles, eram vendidos como rapazes bem comportados e inofensivos, mas ainda menos rebeldes, barulhentos e subversivos que suas contrapartes inglesas. Durante esse primeiro momento, a única mudança digna de nota é a mudança da obsessão por surf para a obsessão por carros, vide o compacto 'Little Deuce Coupe', o LP com - você adivinhou - o mesmo nome e sua continuação de 64 ('Shut Down Vol.2'). Entretanto, não se pode culpar os rapazes californianos por repetirem algo que era regra no rock da década anterior-em outras palavras o único rock que o mundo conhecera, que os inspirara. Os temas permitidos eram necessariamente carros, garotas, escola, e os Beach Boys acrescentaram o surf. É fácil julgar de uma perspectiva atual, mas as "regras" da música foram quebradas pelas bandas dos anos 60, uma de cada vez.

Na atitude e nas letras, os Beach Boys refletiam o ambiente que os gerou -os subúrbios, as high schools, o American Way Of Life - e portanto não traziam novidades. Mas aos poucos e inexoravelmente a banda, servindo como veículo para as ambições de Brian Wilson, sofisticava sua música. Da mesma maneira que os Beatles e suas canções de amor, não se podia determinar a profundidade do lago só se olhando para ele...

Apenas relatar o sucesso e a ingenuidade dessas primeiras músicas não faz justiça à história. Para começar, o conceito musical dos Beach Boys era uma junção única do rock de Chuck Berry com as harmonias vocais de artistas dos anos 50 como The Four Freshmen e The Hi-Los. Da perspectiva atual fica fácil esquecer o valor desses resgates, mas tanto no caso dos Beatles quanto dos Beach Boys (e Elvis na década anterior)-, seu flerte com artistas e ritmos negros expandiram os horizontes do grande público, criando um ambiente propício para que outros artistas, como os Stones, fossem ainda mais fundo na herança musical dos negros americanos e pudessem mostrar e vender isso. Cada single (e muitas faixas de seus LPs) representava um progresso na produção. Suas intrincadas harmonias vocais permanecem induplicáveis até hoje (ao menos sem a ajuda de efeitos de estúdio).

Mesmo excursionando sem parar e gravando em um ritmo frenético (em 63, três discos de estúdio), Brian Wilson gradualmente vai tirando a função de produtor das mãos dos subordinados da Capitol. Começa essa transição já nas gravações do segundo disco ('Surfin' U.S.A.') e já está em pleno controle durante as gravações do terceiro ('Surfer Girl'). Desnecessário dizer que um artista produzir seus próprio discos era algo sem precedentes no pop, e Brian tinha apenas vinte e um anos na ocasião.

Fascinado com o método 'Wall Of Sound' usado por Phil Spector, ele já tenta sua própria versão com uma faixa desse disco, intitulada 'In My Room', fazendo uso de cordas e órgão. Lembrando: o ano era 1963, dois antes de Yesterday.

Propositadamente os Beach Boys deixaram-se incluir no já existente rótulo de 'surf music'. Para os Beatles e demais artistas oriundos de Liverpool, os jornalistas britânicos cunharam o termo 'Merseybeat'. Passava a largo da percepção do público e da crítica que - dos dois lados do Atlântico - estava gradualmente se formando a ressurreição do rock 'n' roll. E isso apesar do óbvio sintoma de que ambas as bandas nutriam admiração e tocavam Chuck Berry.

No final de 63, um DJ de Washington toca um compacto recém-lançado na Inglaterra, trazido por sua namorada que acabara de chegar da ilha. A demanda por novas execuções foi tremenda. Seu título era 'I Want To Hold Your Hand'. Era o marco zero da beatlemania nos EUA. Pouco depois a Capitol se renderia e após um ano de recusas, lança um compacto dos Beatles em solo americano.

Para muitos astros juvenis yankees, 1964 foi calamitoso. Durante uma semana de abril, as cinco músicas mais executadas/compactos mais vendidos nos EUA eram dos Beatles (sem falar no restante da British Invasion). Para os Beach Boys a história foi diferente. Durante certo ponto do ano, a banda tinha cinco LPs simultaneamente entre os mais vendidos (incluindo 'The Beach Boys Concert' na primeira posição) e atinge o topo absoluto das paradas pela primeira vez com 'I Get Around'.

Vale notar que já nesse compacto podia-se perceber alguns lances da ambição musical de Brian Wilson: durante o quarto final da música, os acordes de guitarra que se repetem por toda a ponte sofrem graus diferentes de distorção . A música dura apenas dois minutos. É complicado entender o quanto essas pequenas "transgressões" eram importantes, mas deve-se lembrar que quem estava prestando atenção se espantava com as músicas dos Beatles que começavam pelo refrão.

De qualquer maneira, se quisessem continuar competindo com os Beatles no nível criativo, os Beach Boys teriam que resolver um ponto que os afastava visceralmente destes: os ingleses esmeravam-se na qualidade de seus LPs (com quase quarenta minutos nas versões inglesas, e Bob Dylan chegava a gravar os seus com cinqüenta) gravando músicas fortes, exclusivamente para eles. Já os álbuns do grupo americano duravam entre vinte e cinco a trinta minutos, entulhados de singles que todos já possuíam e radicalmente segmentados entre o material excelente e o dispensável (anos depois, descobriu-se uma camada intermediária de músicas obscuras, mas excelentes).

Findo o ano de 64, Brian sofre seu primeiro colapso nervoso. A razão exata é desconhecida, mas além da estafa resultante do ritmo excruciante das excursões, composição e gravações, outro possível motivo a se somar pode muito bem ter sido seu pai, Murray Wilson, empresário da banda. Anos mais tarde foi revelado que Murray tratava seus filhos com violência, física e psicológica.

Após isso, Brian decide ausentar-se das excursões, mas mantendo a posição de compositor, produtor e membro da banda no estúdio. Nos palcos, foi substituído por Bruce Johnston, que também participaria das sessões de gravação.

Ao abdicar dos estádios lotados de hordas adolescentes em favor de retirar-se no estúdio, Brian passaria a dedicar-se a fazer a música dos Beach Boys progressivamente mais sofisticada, antecipando-se em quase dois anos ao que os Beatles fariam. Em 66 o grupo inglês também decidiria parar de se apresentar ao vivo e encerra-se no estúdio para dar um passo adiante em suas ambições musicais .

Durante o período 65-66, enquanto os Beach Boys cruzavam a América e o mundo, Brian compunha as músicas e escalava os melhores músicos de Los Angeles para gravar toda a sua base instrumental. O grupo ao voltar, só gravava suas -cada vez mais trabalhadas- harmonias vocais. É claro que esse processo começava a desagradar os outros membros.

O primeiro disco do grupo após a aposentadoria de Brian dos palcos foi 'The Beach Boys Today!' de março de 65. Elementos de orquestra, sonoridade rica e arranjos elaborados já eram presença constante, resultando em um dos discos mais fortes lançados por uma banda de rock desde 'A Hard Day's Night' dos Beatles, no ano anterior. Seguiram-se dois compactos de grande sucesso: 'Help Me Rhonda' (o segundo "número um" do conjunto) e 'Califonia Girls', ambos presentes no LP seguinte, 'Summer Days And Summer Nights' (considerado mais fraco que 'Today'). O descontentamento do restante da banda com seu papel reduzido e a desconfiança da gravadora eram silenciados pela continuação do êxito comercial dos novos lançamentos, mesmo em face de novos invasores britânicos -os Rolling Stones, com '(I Can't Get No) Satisfaction'- e o sucesso de outros artistas americanos -como Bob Dylan, finalmente chegando ao grande público com 'Like A Rolling Stone'.

O momento era ótimo para o ego de Brian: não apenas era exaltado por público e crítica, como os rivais Beatles enfrentavam um fim de lua-de-mel com os jornalistas musicais após discos que refletiam sua exaustão ('Beatles For Sale' e 'Help!'), e para os jornalistas de então, plácidos se comparados aos seus esforços anteriores. Foi quando o quarteto não só volta à plena forma como supera qualquer uma de suas gravações anteriores com o LP 'Rubber Soul', no fim de 65.

Além da excepcional força individual de cada faixa, o disco impressionava por sua diversidade sonora-cítara, piano soando como um cravo- e pela inventividade geral dos arranjos. Mas ao invés de se acovardar com a concorrência, Brian resolve aceitar o desafio de tentar superar 'Rubber Soul'.

Passa a gastar uma quantia sem precedentes de tempo no estúdio para a elaboração do disco seguinte. Para driblar a impaciência da gravadora, que queria um lucrar com um LP de Natal (na era dos singles, o único período em que esse formato realmente vendia), a banda lança no final de 65 o álbum 'The Beach Boys Party!', gravado ao vivo no estúdio e talvez o primeiro disco "acústico" da história. Consistindo maioritariamente de covers dos anos 50 (além de três canções dos Beatles e uma de Dylan) era só uma maneira de ganhar tempo -embora tenha conseguido um hit em 'Barbara Ann'- enquanto Brian trabalhava em seu verdadeiro projeto. No final do ano é lançado sem grande alarde o compacto 'The Little Girl I Once Knew', uma amostra do que estava por vir.

O que estava por vir era 'Pet Sounds', lançado em dezesseis de maio de 66. A magnum opus dos Beach Boys, e passados mais de trinta anos desde seu lançamento, ainda presença obrigatória em qualquer lista séria dos melhores discos da história do rock, geralmente nas primeiras posições -quando não na primeira. Somada à qualidade intrínseca de cada composição estava uma dose de experimentalismo nunca antes vista e uma produção perfeita. Várias, senão todas suas composições traziam algum esforço no sentido de expandir o vocabulário musical do gênero com toda sorte de instrumentação estranha ao rock, e ocasionalmente, estranha a qualquer gênero "comercial". Completando o quadro, o uso inventivo de efeitos sonoros -do bater de garrafas de Coca-Cola a latidos de cachorro. Inaugurava-se uma era. Ia se cristalizando a idéia -que já surgia desde o lançamento de Rubber Soul- de que o velho rock 'n' roll estava atingindo níveis artísticos.

O público americano não assimilou o disco: apesar de chegar aos dez mais vendidos, foi o primeiro LP da banda a não ganhar imediatamente um disco de ouro.

Uma das composições designadas para 'Pet Sounds' foi deixada de fora por Brian para ser trabalhada, por ainda mais tempo. Além do desempenho relativamente fraco do LP, os executivos da Capitol tinham cada vez mais motivos para apreensão: na confecção desse novo compacto, Brian gastou seis meses, dezesseis mil dólares e três estúdios diferentes. Mas quando ainda em 66, 'Good Vibrations' foi lançado, indo direto para o primeiro lugar, pela terceira vez na carreira do grupo, todos respiraram aliviados. Os Beach Boys e o público americano haviam se reconciliado.

Na Inglaterra a história foi bem diferente. 'Pet Sounds' vendeu como nenhum outro disco dos Beach Boys havia o feito em solo britânico, o mesmo valendo para o single 'Good Vibrations'. Tornaram-se nada menos que heróis para público e crítica do país, consideravelmente mais receptivos a discos de tendência experimentalista. No fim de 66, a respeitada New Musical Express os premiou como banda do ano, desbancando os Beatles, mesmo com lançamentos fortíssimos destes, como o LP 'Revolver' e o compacto "duplo lado-A" 'Paperback Writer/Rain'. Uma das razões desse sucesso não deixa de ser insólita : o disco foi promovido pelos Beatles e Rolling Stones, movidos por nada além de admiração. Nada parecia poder dar errado.

'Pet Sounds' podia ter roubado a cena, mas os Beatles por conta própria já estavam ao mesmo tempo trabalhado em gravações cada vez mais experimentais. O próprio 'Revolver', gravado enquanto 'Pet Sounds' era lançado, já trazia efeitos sonoros, ragas indianos, sons gravados ao contrário e naipes de metais. E isso, sem perder sua imensa base de fãs e hegemonia comercial.

Dois fatos contemporâneos às gravações de 'Revolver': primeiro, ouvem 'Pet Sounds'; segundo, pouco depois, os Beatles param definitivamente de se apresentar ao vivo. Nunca alguém havia chegado tão perto deles em criatividade.

É claro que nunca saberemos se a história seria a mesma sem 'Pet Sounds'. Os Beatles de fato já estavam fervilhando de idéias, mesmo antes de ouvir esse álbum. Mas é razoável consenso que o lançamento seguinte dos Beatles deve algo (ou muito) a ele. E lendo-se somente esse texto pode-se ter a impressão equivocada de que somente esses dois grupos são os responsáveis pela revolução que o rock passou na ocasião. Não caia nessa. A história é ainda mais complexa e longa do que eu possa tentar reconstituir (nesse texto já enorme e prolixo). Beatles e Beach Boys passavam então a trabalhar em novos projetos.

Os Beatles trancaram-se nos estúdios Abbey Road por um total de setecentas horas, sumindo das vistas do público a tal ponto que cogitava-se que haviam acabado. O que quer que estivessem fazendo era segredo absoluto.

Brian Wilson começava traçar as linhas gerais para a seqüência de 'Pet Sounds' chamada 'Smile' (um título horrível, 'Dumb Angel' fora inicialmente cogitado). Como de costume, convoca algum colaborador para ajudar-lhe com as letras. Costumava trabalhar com o próprio vocalista Mike Love, e em 'Pet Sounds' com Tony Asher. Para 'Smile', escolheu Van Dyke Parks. A escolha desse nome ligado à vanguarda já começava a preocupar banda e gravadora novamente. Apesar do sucesso de 'Good Vibrations', de 'Revolver' e de outros discos "estranhos", apenas Brian conseguia enxergar o óbvio: a música estava mudando. Mas todos que o cercavam temiam que ele estava prestes a arruinar as vendas da banda.

Como grande parte da contracultura, que estava prestes a explodir, Brian estava envolvido com drogas, especialmente LSD. Não custa lembrar de que o contexto dessa "cultura das drogas" era completamente diferente do que é hoje: não só muitos ignoravam os riscos das drogas pesadas, como honestamente se acreditava que as drogas alucinógenas e as estimulantes poderiam "expandir" os limites da mente humana. Mas Brian estava em um mundo diferente de seus companheiros. Vários setores da sociedade americana concordavam com políticos como o então senador Ronald Reagan, quando estes iam a televisão alertar os jovens americanos que um único baseado poderia transformá-los em comunistas homicidas. Brian estava com a contracultura e seus irmãos com os republicanos. O conflito era iminente ...

A pretensão de Brian não era nada simples : 'Smile' estaria tão adiante de 'Pet Sounds em conceito, qualidade e experimentalismo quanto este estava em relação a 'Today!'. Para complicar, Brian acumulava as responsabilidades de não só compor o disco inteiro, como também produzi-lo. Fazendo um paralelo com os Beatles, ele respondia pelas funções de Lennon, McCartney e George Martin. Mas por mais difícil que parecesse, estava-se diante de uma geração de artistas que estava sucessivamente se superando e quebrando tabus e a sensação geral era de otimismo. É quando as diferenças que separavam Beatles e Beach Boys arruinaram 'Smile'.

A Capitol estava nitidamente aborrecida com o tempo que a banda gastava, querendo logo mais compactos e LPs, e que estes vendessem mais do que 'Pet Sounds', a qualquer custo. De galinha dos ovos de ouro, Brian passava a pedra no sapato, que deveria ser removida se necessário. Enquanto isso nos estúdios Abbey Road...

Como já dito, os Beatles usaram setecentas horas de estúdio para seu próximo trabalho. A banda trabalhava alheia às pressões financeiras de sua gravadora e com um corpo técnico exclusivamente dedicado a eles. Corpo técnico de nível sem igual, encabeçado por George Martin (produtor do grupo desde seu primeiro compacto) e pelo jovem engenheiro Geoff Emerick. O que nem Brian Wilson, nem ninguém poderia prever é que na confecção desse novo álbum, os Beatles e sua equipe não estavam apenas destruindo a rotina de que tipo de composição, efeitos e instrumentos se usariam em um disco de rock. Eles estavam alterando radicalmente o próprio processo de gravação.

É fato conhecido que as experiências dos Beatles com vários tipos de drogas, inclusive ácido, já eram fato consumado nesse final de 66, princípio de 67, especialmente no caso de John Lennon. Mas no seu cotidiano, e em especial durante as gravações, não estavam usando nada mais forte que maconha. Brian Wilson estava consumindo fartas doses diárias de LSD.

Quando os Beach Boys chegam ao estúdio para colocarem suas vozes nas composições de 'Smile', ficam chocados: para eles as letras de Van Dyke Parks não faziam o menor sentido. Se antes desconfiavam, agora tinham certeza: Brian estava fora de si. Unem-se à gravadora para tirá-lo do comando.

LSD, gravadora e banda contra ele. Responsabilidades de produção e composição sob sua inteira responsabilidade. E o projeto em si não fluía como ele esperava.

A primeira amostra do que os Beatles estavam metidos veio em treze de fevereiro de 67 com o compacto 'Penny Lane/Strawberry Fields Forever'. Na Inglaterra, foi o primeiro compacto do grupo a não atingir a primeira posição desde 'Please Please Me' (no começo de 63), e nos EUA, desde 'I Want To Hold Your Hand' (começo de 64), provando que parte do público não conseguiu assimilá-lo. De qualquer maneira o sucesso ainda foi estrondoso. A música do segundo lado em especial -substancialmente menos tocada nas rádios-, 'Strawberry Fields Forever' não se parecia com nada já lançado antes por quem quer que fosse. Mesmo assim, ninguém desconfiava o que estava acontecendo.

Este é o disco que pirou com a cabeça do Brian Wilson Mas todos ficaram sabendo, embora atordoados, em primeiro de junho de 67, quando os Beatles lançam 'Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band'. Caso você seja marciano e ainda não saiba, 'Sgt. Pepper's' é o disco mais importante -ao menos do ponto de vista estético e histórico- da história do rock e um dos melhores. Como qualquer ícone, com o passar dos anos, seu real valor hoje é altamente discutido. De qualquer forma, nenhum disco foi tão corajoso, vanguardista e diverso. Sua recompensa foi a elevação do rock ao status de Arte; os LPs se firmando como um formato superior ao compacto; e para os Beatles, aclamação total.

Para Brian, ouvir 'Sgt. Pepper's' foi a gota d'água. Em uma noite, sofre uma crise de paranóia e põe fogo nas fitas de 'Smile'. O colapso é devastador e ele nunca mais seria o mesmo. Era o fim do auge comercial e criativo de uma banda que deixou sua marca na história desse gênero.

Relativamente recuperado, Brian começa a trabalhar com os Beach Boys no disco 'Smiley Smile'. Várias músicas originalmente projetadas para 'Smile' são regravadas, mesmo precisando notoriamente de mais trabalho, e novas composições são feitas. O compacto 'Heroes And Villains' é lançado pouco antes do disco, com recepção morna (para os padrões da banda). Paul McCartney participa do projeto, produzindo a faixa 'Vegatables', mas não era o suficiente.

Quando 'Smiley Smile' foi lançado em setembro de 67, público e crítica, que esperava outro 'Sgt. Pepper's', não conseguiu conter a decepção. E num ano de tantas novidades musicais, os Beach Boys foram deixados de lado, de onde nunca conseguiriam sair completamente.

Dali em diante os Beach Boys-agora uma banda comandada por seus membros (leia-se Carl Wilson e Mike Love), não mais por Brian, progressivamente alienado da vida real- decide seguir por um caminho musical mais tradicional, abandonando de vez a psicodelia e o experimentalismo. Discos como 'Friends', de 68 abandonavam até mesmo as gloriosas harmonias vocais que os fizeram famosos, em detrimento de arranjos simples. Em um cenário dominado por bandas como Cream e Jimi Hendrix Experience não era o suficiente. A banda que temia que Brian acabasse com seu sucesso comercial o terminava de fazer.

No último ano da década o grupo termina seu contrato com a Capitol com '20/20', que trazia uma realidade irônica: a maior parte do conteúdo do disco, composto por vários membros da banda, não chamava atenção. Mas as poucas faixas compostas por Brian fizeram sucesso mediano, e ao menos duas: 'Our Prayer' e 'Cabinessence', impressionavam. Eram duas composições de 'Smile'.

Em 1970, os Beach Boys assinam contrato com a Reprise, subsidiária da Warner, e gravam 'Sunflower', considerado seu melhor disco desde 'Pet Sounds'. Passou despercebido pelo grande público, mas teve boa acolhida na Inglaterra. Finalmente as composições da banda atingiam um bom nível e Brian voltava a trabalhar os arranjos e harmonias. O disco seguinte, no ano seguinte, 'Surf's Up', continuava a boa fase-e a indiferença do público. A faixa título, seria a última música de 'Smile' a aparecer em um disco oficial, também excelente. Dali em diante, Carl Wilson assume a liderança para tentar fazer o grupo vender novamente. O resultado foi fraco e os Beach Boys param de gravar material inédito em 73.

Parecia o fim -e de fato o era- mas a história não queria morrer tão facilmente. Sem grandes expectativas, em 74 a Capitol lança uma coletânea dupla da era de ouro da banda, intitulada 'Endless Summer'. Para surpresa geral vai para a primeira posição, permanecendo nas paradas por mais três anos, e as antigas gravações dos Beach Boys eram novamente tão populares como no seu auge. No fim de 74, a Rolling Stone os elege a banda do ano. Em 75, outra coletânea dupla, 'Spirit Of America', também vende horrores.

Os Beach Boys capitalizam o sucesso lançando novo disco em 76, '15 Big Ones', descaradamente feito para lucrar com a onda de nostalgia. Apesar de recebido com escárnio pela crítica, a manobra dá certo e o disco consegue cravar alguns sucessos (especialmente com a velha canção de Chuck Berry, 'Rock And Roll Music'). Mas fica provado que eles não poderiam concorrer consigo mesmos e os lançamentos subsequentes-'Love You' em 77 (que deveria ser um disco solo de Brian Wilson e é considerado o melhor LP do grupo em muitos anos), 'M.I.U. Album' em 78, 'L.A.-Light Album em 79, 'Keeping The Summer Alive' em 80- vendem menos.

Os anos 80 foram ainda mais conturbados. Em 83, Dennis Wilson morre afogado. Ainda assim o grupo se reúne para mais um disco de sucesso em 85 ('The Beach Boys'), antes que Brian caísse nas mãos de um psicanalista/guru charlatão e lançasse seu primeiro disco solo em 88. Brian já havia passado os últimos dez anos como uma presença inconstante (especialmente quando seu peso chegou a beirar 140 quilos). A banda sem ele grava a música 'Kokomo' para o filme 'Cocktail' (com Tom Cruise) que surpreendentemente torna-se o seu quarto "número um".

Desde então, seu único sinal de vida era uma ocasional excursão. Em 98, Carl Wilson morre de câncer. Antes, em 93 foi lançada uma caixa de cinco CDs, 'Good Vibrations, Thirty Years Of Beach Boys', cujos destaques eram gravações inéditas de 'Smile', que ainda fazem a alegria dos piratas.

Fica difícil -especialmente para mim e meus dois neurônios, que escrevemos tão mal- concluir um texto sobre uma banda com tantos finais trágicos: de seu grande projeto, de parte de seus integrantes. E convenhamos, a popularidade atual dos Beach Boys é tão desproporcional à qualidade de suas músicas... O melhor jeito de terminar talvez seja com uma sugestão: ouça faixas como 'Good Vibrations', 'God Only Knows', 'Help Me Rhonda', 'California Girls', 'Surf's Up' e tire suas próprias conclusões (a minha é que é curioso perceber como até 'I Get Around' tem uma certa melancolia implícita). Afinal ler sobre música, não se compara a ouvir música. Espero que tenham uma grata surpresa.

Rabiscado por
Bernardo H.M. Chacur
(que costuma ser visto pelas ruas de Belo Horizonte com sua prancha de surf debaixo do braço...)

com a inestimável ajuda de Creedance Kiddo.








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