Curiosidades

Memórias de um Colecionador

Um colaborador nosso em Portugal, o jornalista Luís Pinheiro de Almeida, foi esta semana objeto de uma ótima matéria publicada por um jornal de grande destaque naquele país. Saiba mais sobre esse grande colecionador.


Por Paulo Barriga
Fotos: Patrick Grosner

O Beatlemaníaco Luís Pinheiro de almeida. Ele não se parece com o Jô Soares?


Este é um dos mais bem guardados segredos da nação. E como informação restrita e confidencial que é, aqui serão revelados apenas alguns dos pormenores desclassificados, de somenos importância. Caso contrário, os larápios de todo o mundo não nos largarão os calcanhares, esses malandros oportunistas. É que em Lisboa, algures num terceiro andar da cidade, habita o maior colecionador português da obra discográfica e iconográfica dos Beatles. O que, embora possa parecer, não é pouca coisa. Muito pelo contrário. Último telefonema com visado, na voz do próprio: "Estás a ver o 'Let It Be', o último disco dos gajos, pá? Sim, o de importação. Chegou-me agora a notícia de que vale para cima de 400 contos".

Para despistar, um conselho de amigo: não acredite em tudo o que lhe dão a ler. Caso contrário poderá chegar ao final deste breve artigo com um doloroso desajustamento na região maxilar, provocado por uma demorada exposição, em aberto, da cavidade bucal.

Apenas uma para adocicar a palestra: a colecção de discos do rapaz mostrada na fotografia é de tal modo recheada que te tem um disco que falta ao espólio do próprio Paul McCartney. "O gajo ficou todo lixado porque eu não lhe quis dar, nem vender, o disco. Ainda por cima, autografou-o na capa". Não acredita? Tanto melhor! Trata-se de uma edição ultralimitada de uma peça de teatro radiofônica chamada "Pantomime", o disco que McCartney quer ter e não tem. Um "single" editado e oferecido como prenda de Natal aos associados do The Official Beatles Fan Club. Em Portugal apenas terá existido um membro do clube oficial de fãs da banda, um rapaz de Coimbra chamado Luís Pinheiro de Almeida, que enviou a ficha de inscrição para Liverpool em 1966. "Naquela altura", recorda, puxando uma fumaça ao português suave, sem filtro, "ninguém poderia prever que os Beatles a ser o que hoje a gente sabe".

Nos idos da década de 60 sabia-se, isso sim, que não havia melhor isco para as moças do que pôr a correr no gira-discos - ainda não haviam cassetes, essa modernice - uma rodela de plástico que deitasse cá para fora "aquelas canções doidas". O regime do professor de Santa Comba, de cabeça perdida com a estudantalha e com as sublevações africanas, não era lá muito adepto da moda. Mas sempre iam deixando a coisa, já que as canções de amor, assim como os caldinhos de galinha, nunca fizeram mal a ninguém. "A malta andava passada com o som dos Beatles", recorda Pinheiro de Almeida com um sorriso tratante. "No início nem gostava daquilo. Preferia música clássica, mas aqueles temas assim calminhos, tipo 'Do You Want To Know A Secret", deixavam as raparigas doidas".

Vem daí, toca de gamar nas lojas de discos de Coimbra, utilizando a velha estratégia da capa e batina, os pequenos Eps dos "Quatro de Liverpool" que a Valeníim de Carvalho fazia cá chegar com a chancela Parlophone. À falta de tradição de prensar em Portugal LP e "singles", foram editados 27 EP dos Beatles - discos com apenas quatro temas e com capas e alinhamentos diferentes daqueles que eram postos à venda por esse mundo fora - o que confere um alto grau de raridade á discografia portuguesa. Por isso mesmo os coleccionadores das sete partidas não perdem uma oportunidade para pagar a peso de ouro os discos que por cá circularam.

No "Pinhal de Marrocos". Diz Luís Pinheiro de Almeida que tudo começou com o sumpianço do EP "She Loves You" numa qualquer loja de discos da Baixa coimbrã. Uma prática, aliás, bastante usual para a moçada do Bairro Marechal Carmona, que depois dedicava longas tardes a ouvir o resultado dos furtos debaixo de uma oliveira num baldio conhecido por "Pinhal de Marrocos". "Tínhamos um gira-discos portátil e era para lá que íamos curtir o som. O mais engraçado é que éramos todos muito católicos - aos sábados íamos à confissão ao seminário, e o padre dizia sempre que devolvêssemos os discos. E nós lá regressávamos, arrependidos, deixávamos aqueles e roubávamos outros. Era assim, não havia dinheiro para gastar em música", relata, com saudade na voz.

Católico, ou nem por isso, o certo é que "She Loves You" ainda lá mora no tal apartamento lisboeta cuja localização nem por sonhos poderá chegar ao conhecimento da bandidagem. Mora "She Loves You" assim como todas as raríssimas primeiras edições importadas para Portugal dos Beatles, a par de outras dadas à estampa em países menos óbvios, juntas a outras tantas rotuladas peia Apple Records, a editora britânica da banda.

"Não são apenas os Beatles, a música é a grande paixão da minha vida". Nem era preciso justificar. Já bastou entrar num apartamento onde as paredes de todas as divisões são forradas de discos. Até o forno da cozinha lá tem uma fornada de música. Entre Março de 1992 e Agosto de 1993, em sessões contínuas, Luís Pinheiro de Almeida debitou para dentro de uma base de dados informática mais de 150 mil canções, retiradas de cerca de 25 mil títulos discográficos, "Um trabalhão do caraças, foi o que foi. E ainda faltam bastantes", refila.

A vida deste homem dava um livro. Melhor, a sua fixação deu já um livro, Chama-se "Beatles em Portugal", escrito a quatro mãos com Teresa Lage, e foi editado há um ano pela Assírio & Alvim. "Este livro demorou 40 anos a fazer e apenas duas semanas a escrever", confessa. Como diria Gabriel Garcia Márquez, foi viver para contá-la. Entre as páginas do livro lá vão escorrendo as peripécias dos meninos de Liverpool nas terras dos lusitanos. Apesar de nunca terem actuado em Portugal, os Beatles sempre foram dando umas escapadinhas por cá. Umas vezes com nomes falsos "para fugir è mulherada", outras de peito assumido. Aqui, ficamos a saber que a mais famosa canção da banda, "Yesterday", foi escrita para os lados de Vila Nova de Milfontes, Ou que McCartney compôs "Penina" no Algarve. Mas o mais interessante desta publicação nem são as revelações pitorescas, é o depósito do coleccionador. As memórias guardadas religiosamente ao longo de mais de quatro décadas (o livro celebra os 40 anos do primeiro "singie" do grupo, "Love Me Do") e agora partilhadas com algum pudor. Luís Pinheiro de Almeida "dixit": "Sou um guardador". E é disso mesmo que se faz o livro, de estilhaços guardados pelo rapaz que gamava discos em Coimbra, que estudou Direito em Lisboa ao lado de Marccelo Ribeiro de Sousa, António Mega Ferreira e outros que tais, que depois foi militar do Copcon e por isso acabou preso e julgado, e que meteu o Direito e a revolução na sacola e se fez jornalista de agenda noticiosa. Sempre com os Beaties a girar no prato da aparelhagem. Ininterruptamente. Até hoje.

Divulgador dos anos 60. Ainda não há três semanas foi a Londres - "como não podia deixar de ser, é o bichinho" -, ao lançamento mundial de "Let It Be.. Naked". Não que temesse vê-lhe negado o acesso a um dos largos miihões de exemplares que foram dados à estampa desta remistura do último trabalho da mais famosa banda do mundo."É o calor do momento", diz. E depois "queria arranjar um exemplar em vinil, por sentimentalismo". É que já tinha comprado na capital britânica, a 28 de Março de 1970, a primeira edição do disco. Menos de 15 dias depois, a banda dissovia-se, "Todas as histórias têm um fim, não é verdade?".

Esta parece que não, A chamada "beatlemania" ainda agora vai no adro. Percorridos mais de 30 anos sobre o desmembramento do grupo, a febre continua sem dar sinais de querer abrandar. Há salas de conversação na Net, revistas especializadas em várias línguas, reedições discográficas, edições-pirata, romarias aos locais de culto, carreiras a solo... "Quando a malta começou a ouvir os Beatles nunca suspeitamos que isto poderia vir a acontecer. Estávamos no lado certo da História, do lado da rebeldia", refere, enquanto folheia uma fanzine da banda escrita em russo. "Tenho que corrigir os erros deste gajo", prossegue com ironia.

Sorte. Luís Pinheiro de Almeida considera que "é tudo uma questão de sorte". Os momentos altos da sua vida profissional foram ter entrevistado McCartney por duas vezes e Ringo noutra ocasião. "Se não fosse jornalista, isto nunca teria acontecido, e se não fosse um guardador incorrigível não teria aqui estas preciosidades", mostra, com o orgulho e os cuidados de quem tem uma gema preciosíssima nas mãos, o "Álbum Branco" e "Sgt. Peppers..." ("label" Pariophone amarela com capa interior preta).

Mas a sorte não é tudo neste mundo. Ha muito que é um dos principais divulgadores da música dos anos 60 em Portugal. Quem não se recorda, "na RFM de antes das 'play lists'", dos programas "Ob-La-Di, Ob-La-Da" e "Os Amigos de Alex"? É que a sorte também se procura. E como todas as histórias têm um fim, cá vai a morada do homem: ... hãããã,, como é que se chama mesmo aquela rua?...









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