Leonardo Conde
Colecionador
Um dos maiores colecionadores de discos dos Beatles do Brasil, Leonardo Conde manteve na capital carioca durante 5 anos a loja Anthology, um verdadeiro paraíso para o colecionador.
Você seria capaz de se lembrar da primeira vez que ouviu os Beatles?
Lembro sim...eu tinha uns três ou quatro anos, ou seja, lá pelos idos de 1976. É claro que não me lembro nos mínimos detalhes. Como era muito pequeno, tenho apenas imagens na memória. Sei que eu estava na casa de meus avós e o compacto brasileiro "She Loves You"/"I Wanna Hold your Hand" estava tocando na vitrola do meu tio, Pedro, que era o grande fã dos Beatles na família. Enquanto a música tocava, meu tio contava de como aqueles caras, ainda bem jovens, haviam conquistado o mundo com sua música e que eles eram os melhores, etc... lembro que de imediato senti uma identificação muito grande com aquilo tudo, além da música, é claro, que era sensacional e pegajosa. Aliás, essa é uma das principais características dos Beatles: a sua música gruda no ouvido e ninguém consegue tirá-la mais. É claro que para isso o ouvinte tem que ter uma pré-disposição à música de qualidade, porque se você pôr uma música dos Beatles pra um fã de música baiana ou funk ouvir, não vai adiantar nada... (rs). Até hoje me pergunto como consigo escutar um mesmo disco centenas de vezes sem enjoar. Mas é aí que está a magia dos Beatles e o que os difere de outros artistas de qualquer época.
Bem, logo de imediato comecei a me interessar pelo som do grupo. Vasculhei os armários e achei outros discos - eram Rubber Soul, Revolver, Sgt Pepper, Os Reis do Ié, Ié, Ié e vários compactos. O engraçado é que nessa época eu não fazia idéia de que os discos eram relançados e estavam disponíveis na loja da esquina. Eu achava (e até fazia sentido, ainda mais pra um cara com menos de dez anos) que quem comprou, comprou e quem não comprou, não podia comprar mais. Com a morte do John, houve toda uma mídia em cima dos Beatles (não que não houvesse antes, mas dessa vez era bem mais forte) e a Som Livre soltou o LP The Beatles In The Beginnning, que continha algumas das gravações de Hamburgo e a campanha na TV foi intensa. Fui correndo comprar e ao chegar à loja, que por sinal ainda existe lá na Rua Conde de Bonfim no Largo da Segunda-Feira, onde morava na época, perguntei ao balconista: "Vocês têm o disco dos Beatles que está anunciando na TV?" e ele disse: "está ali naquela estante". Bem, fui direto e quando puxei o In The Beginning, a fileira estava cheia de discos dos Beatles, alguns dos quais eu já conhecia de nome e nunca imaginava um dia tê-los. Foi como encontrar a Terra Prometida. A sensação que tive quando vi todos aqueles discos foi igual ou melhor do que de repente se deparar com a Ellen Rocche e a Louise Altenhofen no seu quarto!!! E antes de completar 12 anos eu já tinha a coleção dos Beatles, a do John, do Paul, do George e do Ringo completas e ainda alguns "boots".
Qual o tamanho da sua coleção atualmente? Há algum critério para catalogação da mesma?
Sabe que eu nunca contei quantos discos eu tenho??? Pois é... várias pessoas já me perguntaram. Um dia, eu prometo, eu terei paciência para isso (rs)... pode me cobrar... mas posso dizer o que eu coleciono: vamos ver... em vinil eu tenho completas a coleção inglesa, a brasileira da época (com capa plástica) e a americana. Tenho também LPs de países variados, como Austrália, França, Alemanha, Japão, Rússia, etc., mas desde que esses LPs tenham alguma diferença em relação aos ingleses ou americanos. Por exemplo, o For Sale alemão tem a contra-capa totalmente diferente; O Let It Be japonês vem naquela edição em que a capa abre e tem fotos dentro (sensacionais, por sinal). Outro item muito legal é a versão australiana do álbum 20 Greatest Hits. Lá esse disco se chamou The Number Ones e vem com um compacto duplo de bônus e conta também com uma mixagem exclusiva de "I Wanna Hold Your Hand". Tenho alguns velhos bootlegs em vinil. O material já saiu todo em CD com som bem melhor, mas as capas desse vinis não têm igual! Os meus favoritos são Silver Days, Wonderful Picture Of You, Strawberry Fields Forever, sem contar, é claro, o grande The Decca Tapes. Terminando a coleção de vinis, tenho as discografias completas dos quatro Beatles solo, incluindo algumas versões bem raras hoje em dia, das quais posso citar o Red Rose Speedway com um encarte com fotos, versões mono de LPs como Ram, McCartney e All Things Must Pass, uma edição do Mind Games com uma capa totalmente diferente, etc. Partindo pros CDs, tenho a discografia "normal" dos Beatles e das carreiras-solo e praticamente todos os bootlegs importantes. Só não tenho, é claro, aqueles bootlegs que se repetem, ou seja, que tenham a capa diferente mas que o material já saiu em outros CDs.
Qual o meu critério para colecionar? bem, as coleções oficiais (grupo ou carreiras-solo) eu acho que todo fã tem a obrigação de ter tudo, mas em relação aos LPs pertencentes à discografia de outros países e à coleção não-oficial (ou seja, os bootlegs), se você não tiver um critério, acabará louco ou totalmente sem grana. Eu, por exemplo, não compro CDs com som muito ruim, daqueles que você nem sequer identifica quem está cantando... também não costumo comprar (nesse caso, CDs oficiais) que têm apenas pequenas participações de algum Beatle: por exemplo, um CD em que o Ringo toca bateria em uma faixa, ou um CD em que o Paul toca pandeiro em duas faixas...assim, eu, particularmente, já acho exagero (apesar, é claro, de respeitar quem coleciona participações). Mas posso comprar um CD que tenha uma ou duas músicas cantadas por um Beatle... aí já vale a pena. Como exemplo, posso citar a trilha do do filme Maybe Baby que tem o Paul cantando a faixa título além de tocar baixo e bateria e com o Jeff Lynne nas guitarras. A peformance é tão boa que já vale o CD. Eu confesso que nunca escutei o resto do disco!!!
O que eu mais gosto de colecionar são mixagens diferentes lançadas ao redor do mundo. É incrível. Quando a gente acha que já catalogou todas, sempre aparece alguma que eu nunca havia escutado. Por causa dessa minha eterna busca acabei fazendo amizade com vários "caçadores de mixagens" de vários lugares. Colaborei inclusive no livro "The Beatles Mixes" (segunda edição) do meu amigo alemão Holger Schoeler. É um livro, aliás, que indico a todos os fãs sérios e detalhistas. Minhas mais recentes aquisições nesse sentido foram as versões originais mono dos álbuns Help!, Rubber Soul e Revolver em CD e com um som absolutamente incrível. Para catalogar, nada muito complicado. Separo os discos primeiro na ordem Beatles-John-Paul-George-Ringo. E dentro de cada discografia, separo primeiro por nacionalidade e depois, ordem cronológica. Simples.
Dentro da sua imensa coleção (que não é só de discos), que item é o seu mais querido? E o mais valioso?
Eu sempre gostei mesmo é de colecionar música. Nunca fui o fã do tipo que compra tudo que se relacione ao ídolo. Minha coleção é formada por discos, vídeos, livros e revistas. Pra você ter uma idéia, eu só tenho duas camisas dos Beatles e uma dela foi presente. Memorabilia nunca foi a minha praia. Sempre preferi gastar meu dinheiro com discos em vez de souvernirs, apesar de, como já falei, respeitar quem gosta.
Sobre o item mais querido, essa resposta pode ser chavão, mas é a mais absoluta verdade: eu gosto de tudo que eu tenho. É claro que há itens que gosto mais do que outros, mas dizer qual é aquele do qual mais gosto realmente é muito complicado. Posso citar alguns, entretanto. Tenho um carinho especial pela coleção original brasileira da Odeon, ou seja, aqueles velhos vinis com capa plástica. Acho legal ver como o pessoal ouvia os Beatles na época. Gosto de ver os selos, as capas diferentes, etc. Demorei anos pra conseguir todos os LPs (alguns compactos ainda me faltam...) num excelente estado. Em CD posso citar a coleção The Beatles At The Beeb de treze volumes, que trazia um grande número de músicas inéditas até então (hoje quase todas já saíram oficialmente no CD Live at the BBC) além de ter capas muito bem boladas. Essa série eu também fui conseguindo aos poucos. E isso é que me traz mais recordações, ou seja, o colecionador correndo atrás daquela "figurinha difícil". Outro item que eu guardo com um cuidado especial é um CD A Hard Day's Night brasileiro cuja capa em vez de azul, é verde. O porquê da troca de cor é um mistério... me lembro que perguntei ao lojista e ele disse apenas que aquele exemplar tinha vindo assim. Importante: não é um CD "paraguaio", é da EMI mesmo! Não posso esquecer também alguns itens que podem não ser considerados raros pelos fãs da época, mas que pros fãs da minha geração são muito procurados. São os quatro primeiros LPs em stereo e mais o Magical Mystery Tour com o encarte especial de 24 páginas. Acontece que a maioria do pessoal da minha geração começou a colecionar quando eram já adolescentes e aí eles já pegaram a coleção remasterizada (que traz os quatro primeiros LPs em mono e o MMT sem o encarte). Eu, por sorte, comecei a colecionar bem mais novo e ainda peguei a coleção não-remasterizada (e, é claro, comprei tudo de novo quando saíram os remasterizados!!!).
Já o mais valioso item que eu tenho, com certeza deve ser o baixo Gibson assinado pelo Paul McCartney que ganhei na época de sua vinda a São Paulo em dezembro de 1993, embora nunca tenha mensurado o seu real valor de mercado.
Quais as principais dificuldades enfrentadas pelo colecionador brasileiro na hora de obter aquele disco raro, ou aquele ítem cobiçado há anos?
Bem, em se tratando de CDs importados em catálogo, o fã brasileiro não tem muito do que reclamar. Isso porque, apesar das gravadoras que detêm os direitos das carreiras-solo não lançarem todo o catálogo dos ex-Beatles no Brasil, todas as lojas que trabalham com itens importados podem trazê-los. Agora, em vinil é que fica mais complicado, pois aqui no Brasil é muito difícil encontrar lojas que vendam vinis importados antigos ou novos. E quando encontramos alguma, não é sempre, é claro, que a gente encontra o item que tanto queremos. Aí, o colecionador acaba apelando para as lojas virtuais estrangeiras, o que acaba na maioria das vezes sendo uma furada, pois além dos riscos de extravio e quebra (o que não é incomum), o cliente ainda tem que pagar as despesas de alfândega que sai a 60% do valor pago à loja. Eu acho que a melhor coisa é mesmo fazer amizade com colecionadores estrangeiros porque assim a gente pode trocar material. Muita gente às vezes não sabe que um determinado disco brasileiro que é vendido, digamos, a R$5,00 no sebo da esquina, lá fora é disputado à tapa. De repente, esse disco pode ser trocado por algum item valiosíssimo aqui, mas que no estrangeiro já é coisa mais do que trivial (já aconteceu comigo...).
Em relação aos bootlegs, ainda fica mais complicado. No final dos anos 80 e início dos 90, era comum qualquer loja de importados vender bootlegs dos Beatles e a variedade era absurda a ponto de deixar qualquer colecionador maluco. Mas em meados de 1995 os "boots" passaram a ser encontrados com muita dificuldade. Isso talvez seja explicado pelo fato de que nessa época praticamente tudo que havia disponível dos Beatles em gravações não-oficiais já havia saído. Se você fizer uma pesquisa verá que o material não-oficial dos Beatles que saiu após 1995 é realmente muito pequeno e isso fez com as lojas se desinteressassem em ficar trazendo sempre os mesmo discos. E hoje me parece que as principais gravadoras de bootlegs, como a Yellow Dog, mudaram a sua estratégia de venda, partindo para leilões, tipo E-bay, em vez de vender seus discos no mercado comum.
De qual dos 4 ex-Beatles é mais difícil se obter raridades?
Isso tem mais a ver com a quantidade de discos que cada um deles tem disponível no mercado. Em relação aos bootlegs, por exemplo, o Paul ganha disparado. O Ringo tem muito poucos. Por isso, posso dizer que é o Ringo o mais difícil, porque dele sai menos coisas.
E para os colecionadores de discos de vinil, será que eles continuarão podendo comprar os novos lançamentos (como por exemplo, edições do Brainwashed e do Ringo Rama)?
A Inglaterra é o único mercado que ainda fabrica discos de vinil. Os EUA já desistiram há algum tempo. Mas parece que já há um sinal de que o vinil, infelizmente, vai mesmo morrer. Isso porque o Ringorama e o Back in the World não foram lançados em vinil (pelo menos até a data da escrita, 06/05/03). Discos recentes como Driving Rain, Brainwashed, One e Wingspan foram todos lançados em vinil e em cassette. Outra dificuldade pro fã em conseguir esses discos em vinil é que eles são feitos em edições limitadíssimas que logo se esgotam. Por exemplo, o Live at the BBC saiu em dezembro de 1994 e a edição em vinil rapidamente se esgotou e eu fui um dos que ficou a ver navios... só fui conseguir um exemplar em 2001 quando a EMI inglesa resolveu prensá-lo novamente, mas que também já está bem difícil de conseguir agora.
Você já esteve pessoalmente com algum Beatle?
Infelizmente não. Mas ainda dá tempo, né? Seria muito legal poder conversar com o Paul e o Ringo, mas não pra ficar de tietagem de fã, mas sim pra conversar como grandes amigos. Bem, quando você passa a sua vida inteira ouvindo as canções dos caras, interpretando as letras, tirando as músicas no violão, ou seja, tendo as músicas marcado todos os momentos de sua vida, as alegrias, as tristezas, os namoros que deram certo, os que deram errado, as viagens, as festas, etc, eu acho que você já tem permissão para considerá-los seus amigos, né? bem mais até do que muitos que te cercam...
Você é um dedicado pesquisador e colecionador de uma geração mais recente - ao que me parece. Como sente o empenho da grande maioria em buscar informação preciosa e como voce acha que a Internet ajuda nessa hora?
É interessante a sua pergunta, porque de todos os colecionadores ou fãs que existem no Brasil, são muito poucos os que realmente se dedicam à pesquisa. Alguns só sabem comprar, comprar e comprar compulsivamente e às vezes não sabem nem o que estão comprando. E se você faz uma pergunta do tipo: "as músicas são stereo?", "Esse CD traz tal mixagem rara?" ninguém sabe responder. Falando assim, pode até parecer que sou detalhista demais ou coisa parecida, mas só que é agindo assim, ou seja, pesquisando e se preocupando com os detalhes é que você seleciona as suas compras e evita adquirir coisas repetidas. E nós sabemos que no mercado de raridades a coisa mais comum são CDs de inúmeras gravadoras diferentes com repertório idêntico. É isso... a vantagem de entender detalhes como diferenças de mixagens, em -que-disco-está-determinada-música, em-que-disco-determinada-música-existe-com-melhor-qualidade, stereo/mono, datas de gravações, etc é justamente essa: poder selecionar o que compra e, conseqüentemente, guardar dinheiro pro que for realmente importante.
Em relação à pesquisa pela internet, com certeza o seu aparecimento facilitou demais a vida dos pesquisadores e colecionadores. Hoje em dia, qualquer dúvida que o fã tenha, basta ir num site de busca e pesquisar que sempre aparece alguma coisa. É um absurdo a quantidade de sites ligados aos Beatles que existem pelo mundo. E no caso deles eu acho que essa nova forma de pesquisa ainda é mais importante, pois você sabe que até pouco tempo - mais precisamente até o lançamento dos livros do Mark Lewishohn no final dos Anos 80 - havia muito pouca informação disponível sobre o grupo. Sobre a vida pessoal dos quatro, a quantidade de informação ainda chegava a ser satisfatória, mas em relação à sua obra, era praticamente nula. Por exemplo, eu tenho um livro chamado You Can't Do That! do autor Charles Reinhart lançado em 1981. Bem, esse livro lista com detalhes todos os bootlegs dos Beatles juntos e em carreira-solo (em vinil, é claro) lançados na década de 70. O engraçado é que praticamente todas as informações do autor sobre as gravações são erradas. Culpa dele? não. Ele com certeza deve ter tido as suas fontes. O problema é que as fontes que havia na época eram totalmente imprecisas. Para citar um exemplo, as músicas das sessões da BBC que vão de 1962 a 1965 são todas listadas como pertencentes à Rádio Luxemburgo em 1962... e por aí vai... também eram bastante imprecisas as informações sobre as sessões de gravação na EMI. O pouco que havia eram matérias realizadas na revista Beatles Monthly Book, mas que também continham alguns erros. Somente com o lançamento dos sensacionais livros do colecionador Mark Lewisohn The Beatles Recording Sessions (listando tudo que aconteceu nas sessões do grupo na EMI), The Beatles Day By Day, The Beatles Live e The Beatles Chronicle (esse, pra mim, é a Bíblia dos Beatles - é uma condensação de todos os livros citados num só) é que os colecionadores puderam finalmente saciar sua fome de conhecimento. No Brasil, a situação era bem mais grave. Outro dia, por exemplo, eu li uma revista Manchete de 1967 que eu simplesmente fiquei pasmo. A capa trazia uma foto do grupo tirada em 1964 e a matéria em questão trazia entrevistas de 1962 a 1965 (!!!). Fiquei pensando como devia sofrer o fã brasileiro na década de 60...
Como surgiu a idéia de abrir uma loja dedicada à música dos anos 60/70 - em especial, aos Beatles?
Essa era uma idéia que eu tinha desde que nasci, praticamente... tanto que é eu me formei em Informática mas na época nunca me preocupei em estagiar na área (da qual aliás confesso não ser muito fã...). Ou seja, eu sabia que o meu lance era realmente abrir a loja e trabalhar com música. E no caso da especialidade em Pop-Rock dos Anos 60/70 é porque essa sempre foi a minha praia musical. E eu acho que da mesma maneira que um dono de churrascaria tem que saber fazer churrasco, um dono de loja de disco tem a obrigação de entender tudo sobre o que vende. Qual de nós não fica terrivelmente irritado quando vai a uma loja de discos e, ao perguntar sobre um determinado artista, escutamos aquela perguntinha: "Quem???". Essa é uma falha que 99% das lojas ainda cometem. Outro dia entrei numa dessas mega-lojas (as quais chamo de "mega-preços"...) cuja vendedora não sabia quem era Rod Stewart(!!!)...
A minha idéia inicial era disponibilizar ao público carioca (a Anthology funcionava no Rio) os CDs que não eram vendidos nem nas mega-lojas. E, como eu conhecia bastante o tema, sabia escolher exatamente os CDs certos. Por exemplo, se eu quisesse trazer uma coletânea de um determinado grupo, eu procurava trazer aquela que tinha mais músicas ou então som melhor, etc. Eu reparava que as outras lojas não sabiam (e ainda não sabem...) muito escolher os discos importados para seu estoque. Era comum você ir numa loja e ver coletâneas furrecas com dez faixas apenas, com regravações em vez das gravações originais, ou então CDs que vinham sem livreto, etc. Eu procurava sempre trazer sempre o melhor que havia no mercado de cada artista. E ainda havia o serviço de consultoria em música, ou seja, se o cliente estivesse procurando uma música mas não sabia o nome do artista ou sabia o nome do artista mas não sabia o nome da música, a gente sempre conseguia matar a charada. Me lembro de várias situações engraçadas quando os clientes chegavam a cantar trechos de músicas (dá pra imaginar a afinação, né?) pelo telefone para que eu pudesse identificá-las... isso tudo era com certeza o nosso maior diferencial.
Como você sentiu o interesse dos fregueses por material alternativo aos Beatles? Em geral, os novos colecionadores partem para carreira solo ou preferem mergulhar na pirataria do grupo? Existem muitos interessados em participações especiais e coisas mais detalhistas?
Acho que o fã verdadeiro dos Beatles, assim como aconteceu comigo, tende a seguir esta ordem: Beatles - carreiras-solo - bootlegs - outros artistas com som semelhante aos Beatles. É claro que isso não é uma regra, mas é o que acontece em geral. E também é óbvio que mesmo que o colecionador esteja num determinado momento dando prioridade, digamos, aos discos do grupo, se aparecer algo da carreira-solo que ele ache que valha a pena adqurir naquele momento, ele vai comprar. Na Anthology o que mais se vendia eram os discos solo. Isso porque são muito poucos os que saem no Brasil. Você precisa ver a cara de um fã quando se depara com discos que ele nem sabia que existiam em CD! E isso acontecia muito lá... mas como falei antes, é meio difícil generalizar. Eu conheço exemplos de todos os casos, ou seja, fãs que depois que compraram tudo do grupo partiram para as carreiras-solo, outros que partiram para os bootlegs, etc... e há até casos que eu nunca imaginei que pudessem existir, como alguns que só compram CDs da carreira-solo do Ringo e um que só comprava Wings! Não que o Ringo não merecesse tamanha admiração, muito pelo contrário, é claro, mas que é muito raro encontrar um fã que dispense os discos do John, do Paul e do George. Isso é... e o caso do fã dos Wings é mais raro ainda. O cara nem queria saber de nada que o Paul havia feito depois de 1979. Eu nunca havia visto ninguém que conseguisse desassociar os Wings ao Paul McCartney. E sobre as participações de John, Paul, George e Ringo em discos de outros artistas, havia muita gente interessada também. Bem mais até do que eu sempre previ. É certo que nesse caso não se incluem os fãs novatos, mas somente aqueles que fazem questão de ter realmente tudo, tudo, tudo, tudo mesmo, isto é, os fãs mais radicais.
Você sentiu, no tempo em que teve a loja, que os Beatles serviram de portal para que os fregueses, novos colecionadores ou não, pudessem conhecer o trabalho de artistas amigos ou contemporâneos dos Beatles - como Gerry and The Pacemakers, Billy J. Kramer, Cilla Black, The Fourmost, George Martin, Bob Dylan, Tom Petty, Elton John, Ravi Shankar, Badfinger, Harry Nilsson etc?
Tá esquecendo os Herman's Hermits!!! Com certeza absoluta. Como citei na pergunta acima, passar a gostar de artistas com som semelhante é uma coisa que acontece com todo fã sério. É uma conseqüência. Ou seja, quando você já tem tudo dos Beatles, você, por incrível que pareça, continua com vontade de ter mais. Aquele som te faz tão bem que você sempre tem a necessidade de conseguir mais. E, assim, como infelizmente não existem mais músicas inéditas no baú dos Beatles (salvo é claro algumas do arquivo da BBC com som ruim ou então aquelas jams do Let It Be que não são propriamente canções) o fã tem que achar uma continuação pra aquilo tudo. Certo?
No meu caso, eu posso dizer que tive bastante sorte, pois assim como cresci cercado de discos dos Beatles, também vivi cercado de discos de artistas como Herman's Hermits (depois dos Beatles, o grupo de que mais gosto), Johnny Rivers (o que completa o meu pódium junto com os Beatles e os Herman's Hermits), Simon & Garfunkel, Rolling Stones, Hollies, The Mamas & The Papas, etc. Mas o houve um momento chave nisso tudo. Foi quando logo após eu ter completado a coleção oficial dos Beatles em vinil, a EMI lançou por aqui (1983, pra ser mais exato) uma sensacional coletânea chamada Yeah Yeah Yeah (lance em CD, EMI!!!) que compilava sucessos de artistas e grupos de Beat Music dos Anos 60 como Billy J. Kramer & The Dakotas, Swinging Blue Jeans, The Fourmost, Gerry & The Pacemakers, Manfred Mann, Kenny Lynch, The Animals, os já citados Herman's Hermits e Hollies, Lulu, etc. Ouvir esse disco pra mim na época foi como descobrir músicas inéditas dos Beatles, se não tudo isso, foi pelo menos a coisa mais próxima disso, ainda mais porque algumas das músicas eram composições de Lennon & McCartney. A partir daí eu comecei a me intessar também por esses artistas. Na era do vinil era praticamente impossível encontrar LPs desses artistas. Com a chegada do CD, entretanto, praticamente todos voltaram ao mercado, graças a Deus! Eu sinceramente acho imprescíndivel pra qualquer fã sério dos Beatles ouvir o trabalho desses artistas da década de 60. Além dos quais já falei, posso acrescentar The Pete Best Combo (ele mesmo!), The Association, The Searchers, Chad & Jeremy, Peter & Gordon, The Roulettes, The Lovin' Spoonful, The Applejacks, The Beach Boys, Jan & Dean, Paul Revere & The Raiders e outros. Uma coisa interessante que você percebe quando começa a ouvir os outros grupos dos Anos 60 é como os Beatles eram sempre o referencial a ser seguido. Por exemplo, se você escutar um disco de um grupo lançado em 1963-1965, o som com certeza será Beat Music, com muita guitarra, ritmo e vocais em harmonia (tudo bem, nem tão em harmonia quanto os dos Beatles...). E se você escutar um disco lançado em 1967-1969 será com certeza um som psicodélico. Mas eu não considero isso uma característica ruim, muito pelo contrário. Eu acho que foi justamente essa tentativa de se equiparar com os Fab Four que fez com que a década de 60 fosse a mais fértil musicalmente de todas. Hoje, muitos criticam o Oasis por imitar os Beatles. Mas convenhamos: não é melhor eles imitarem os melhores do que imitarem, por exemplo, o Eminem?
Por que a loja fechou? Não dava pra ter continuado apenas com as vendas online?
Bem, eu não abri a Anthology pensando em dinheiro. Eu abri a minha loja por um ideal. É claro que não vou ser hípócrita e dizer que nunca pensei em dinheiro. É óbvio que se você abre um comércio você tem fins lucrativos, afinal você está trabalhando e trabalho tem que ser remunerado, né? Mas 90% era realmente pelo ideal. Eu imaginava que pudesse fazer uma espécie de point para os verdadeiros colecionadores, onde o pessoal se reunisse para discutir lançamentos e coisas afins... mas...
Com o passar dos anos eu fui vendo que as coisas nesse meio não são tão "românticas" assim. Ou seja, comércio é comércio e quem entra nele tem que aceitar tudo de chato e desagradável que é decorrente da atividade. Eu nunca tive olhos de comerciante. Eu sempre fui um colecionador. O comerciante tem que ver sua mercadoria de modo frio, tem que "engolir sapos", aceitar grosserias e não responder, agüentar os "malas-de-plantão" e não se aborrecer. Ou seja, tudo em nome da grana. E ele está certo, é claro, pois o que move o comércio são as vendas. No meu caso, como eu nunca tive esse perfil, eu simplesmente não aturei por muito tempo. Chegou uma hora que eu simplesmente larguei tudo e disse "chega". Como eu disse anteriormente, o meu perfil é de colecionador e não de comerciante. Era terrivelmente desagradável pra mim vender produtos importados (de preço caro por natureza, obviamente), itens de qualidade, raros e ter que suportar uns e outros pedindo um "descontinho amigo" como se a minha loja vendesse tomate ou banana (risos)... ou então aquele tipo de cliente que ficava tentando menosprezar um produto achando que iria conseguir um abatimento. Isso é atitude aceitável numa feira, por exemplo, mas nunca numa loja de produtos importados, não concorda? chega a ser ridículo.
O que mais me decepcionou foi justamente isso: eu tinha uma idéia que iria conviver com clientes que entendessem o espírito, a proposta da loja, mas infelizmente eu verifiquei que no Brasil (ou pelo menos aqui no Rio) não há lugar pra uma loja do tipo da Anthology. Se você comprar qualquer revista de música americana, você verá na parte dos classificados um sem-número de anúncios de lojas semelhantes à minha. Por quê? porque lá existe um público que dá valor à música. Eu conheço, por exemplo, algumas lojas americanas que são especializadas em compactos de 45 rotações. E elas vivem cheias de fregueses que entendem do assunto e que pagam sem chorar o preço justo por um item raro de colecionador. Aqui em nosso país, infelizmente, o perfil generalizado do cliente de loja de disco é aquele que acha que bom é sinônimo do que é barato e não daquele item que às vezes é caro, mas vai ser usufruído a vida inteira. Muita gente entrava na loja achando que iria comprar discos a R$9,90, que loja de disco é tudo igual. Agora, é muitíssimo importante deixar claro o seguinte: isso não tem nada a ver com o poder aquisitivo do cliente. Eu conheci pessoas ricas que eram extremanente pão-duras, ou então aproveitadores que às vezes sabiam que aquele determinado item estava num preço bom mas bancavam os ignorantes só para tentar se dar bem em cima do comerciante. E ao mesmo tempo conheci outras pessoas humildes mas que eram verdadeiros colecionadores. Compravam pouco, é certo, mas davam extremo valor ao que adquiriam e sabiam da importância daquele determinado item e, conseqüentemente, faziam o comerciante ter satisfação em lhe vender um produto.
Quando eu decidi fechar a loja muitos colegas vieram me falar: "Mas comércio é assim mesmo, você tem que aturar...", mas pra mim não deu, ou então eu iria infartar com trinta anos de idade. Realmente não há como ser colecionador e comerciante ao mesmo tempo, a não ser, é óbvio, que você queira vender produtos que nada têm a ver com você. Mas graças ao meu trabalho e dedicação posso dizer com letras grandes que a loja deu certo sim nos seus cinco anos de duração. Ao contrário do que muitos "urubus" devem ter pensado quando a Anthology se foi, fechei no azul, sem dever nada aos meus fornecedores e em dia com todas as contas. Conhece algum comerciante que possa dizer isso hoje em dia? Pretendo continuar na área musical sim, mas longe de comércio... quem sabe numa gravadora, uma rádio, produtora, revista musical... aí me anima. Agora, felizmente, posso dizer também que conheci grandes figuras através da Anthology. Fiz grandes amigos lá, com quem mantenho contato até hoje. Só não voi citar nomes porque aqueles que eu por ventura esquecer iriam fica magoados comigo, mas tem muita gente boa, não só no Rio mas também no país inteiro. Colecionadores de verdade que fazem questão de ter o CD original e não cópias falsificadas de camelô, e que realmente dão valor à música e ao trabalho de quem lida com música. Fiquei muito contente, inclusive, quando na época do fechamento, várias pessoas ligaram pra mim tristes e até emocionadas me dando força e ainda pedindo para não fechar a loja pois gostavam do ambiente, do meu trabalho e principalmente da música que eu vendia. Isso, sem dúvida, foi muito legal.
De que maneira você pensa em continuar trabalhando com música e, mais objetivamente, com a obra dos Beatles?
Pois é, a melhor coisa é a gente poder trabalhar no que gosta, não é? Bem, em relação aos Beatles meu maior objetivo é ter um programa de rádio sobre o grupo e que também abrangesse a cena musical da época, apesar de saber que hoje em dia seria muito difícil encontrar espaço pra um programa desse tipo em virtude da queda vertiginosa de qualidade das nossas emissoras, você sabe. Hoje em dia é só rap, axé, (pseudo) sertanejo, brega, funk e outras porcarias.
Gostaria de poder participar de algum modo na divulgação do trabalho do grupo de modo que eles estivessem sempre em evidência. Acho, por exemplo, que a EMI do Brasil, tendo os Beatles como um de seus principais mantenedores, deveria caprichar mais na divulgação dos lançamentos do grupo, que vende bem, mas se houvesse uma campanha maior as suas vendas seriam bem maior. Por exemplo, eu já vi pessoas que são fãs, mas por não terem o hábito de freqüentar lojas de discos nem sabiam que os álbuns dos Beatles já existiam em CD!!! E olha que eles foram lançados em 1988 por aqui. Também tenho projetos para relançamentos, séries e compilações daqueles grupos similares aos Beatles que citei anteriormente que ainda pretendo enviar para algumas gravadoras. Fico pasmo ao ver o descaso que as nossas gravadoras, principalmente a mesma EMI do Brasil (que é detentora dos fonogramas da grande maioria desses artistas), dão pro pop-rock internacional dos Anos 60. Parece que eles ainda não perceberam a mina de ouro que têm nas mãos. Em vez de lançarem aquelas séries "budget" tipo "O Talento de" ou "Meus Momentos" que geralmente mofam nas caçambas de R$9,90, eles tinham que promover esses artistas os associando aos Beatles, fazendo com que aquele consumidor que compra os CDs dos Beatles também passe a se interessar pelos grupos similares, ou então mostrando para aquele fã que viveu a época que as músicas que ele escutou na sua adolescência estão todas disponíveis em CD na loja da esquina. Mas não adianta nada lançar o material em séries baratas e sem nenhuma divulgação e, por incrível que pareça, utilizando para alguns CDs fonogramas retirados de discos de vinil, apesar das músicas já terem saído em formato digital lá fora há muito tempo.
Uma coisa que eu acharia muito legal de fazer também seria lançar em CD no Brasil os álbuns exclusivos lançados aqui nos anos 60 (as gravadoras brasileiras, assim como várias ao redor do mundo na ápoca, mudavam repertório, capa, etc). Quando eu tinha a loja muita gente me perguntava sobre esses discos e eu explicava "não, mas esse disco só saiu no Brasil..." É um fato interessante, as pessoas que viveram a época (as quais invejo...) têm saudade de ouvir as músicas de seus artistas favoritos em CD da mesma forma como as ouviam nos Anos 60. Os fãs dos Beatles que viveram a década de 60 todos eles suspiram por discos como Beatlemania, Beatles Again, Beatles 65. No caso dos Beatles, infelizmente, esses relançamentos seriam impossíveis, pois a Apple proíbe, mas se pudesse pelo menos com os outros artistas já seria o máximo. Publicar um livro com minhas pesquisas sobre versões diferentes de cada música também é um projeto que eu tenho. Esse eu acho que é mais fácil. Um grande abraços pra todos!
Entrevista concedida a
José Carlos Almeida e Marcelo Fróes
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