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Reviews
Lennon Legend em DVD
Quando um artista brilha mais que o seu mito
Marcelo Sanches
O dvd "Lennon Legend" foi lançado no Brasil há poucos dias. Nele, estão 20
clips dos maiores sucessos do velho John depois da separação dos Beatles,
além do material extra com algumas apresentações ao vivo na TV e novas
montagens realizadas pela viúva Yoko Ono, que é a responsável por todos os
produtos com a marca "Lennon".
O lançamento vale principalmente pela
qualidade do som, já que a maior parte das canções ainda não havia sido
remasterizada. Como uma 'graça' aos fãs de Lennon, Ono aumentou o 'fade-out'
das músicas, fazendo com que ficassem mais extensas que as versões
originais. A qualidade da imagem é perfeita, claro, mas infelizmente a
produção do DVD exagerou nas edições, ignorando os clips originais da época
e modificando alguns outros, incluindo vários truques de computação e muitas
imagens do casal John & Yoko nos jardins de sua mansão, nos famosos bed-ins
de 69, na praia, nas performances dos anos 70, etc, etc. As tais imagens
inéditas anunciadas na mídia são interessantes, mas, lamentavelmente
escassas e diluídas entre as mais comuns. Assim, a sensação que me ocorreu
foi ambígua; vibrei ao ouvir uma mixagem excelente, em 5.1, valorizando
detalhes até então inéditos nas gravações (e aqui vai a pergunta já
desgastada: quando é que vão remasterizar o catálogo dos Beatles?), embora,
por outro lado, tenha me irritado com a exagerada vaidade e também com o
culto ao mito "Lennon" que tanto impregnam os lançamentos póstumos do
ex-beatle.
Ono parece se esquecer que ele foi muito mais que seu marido e
parceiro - e sem dúvida a união deles foi, em alguns momentos, criativa e
interessante - e acaba pecando ao se auto inserir constantemente nas imagens
de clips que originalmente não a mostravam. Além do mais, os Beatles são
mais uma vez quase excluídos do contexto, aparecendo apenas durante alguns
segundos em imagens de apenas um clip, como se fossem uma mera passagem no
'amadurecimento' de Lennon, uma parte de sua infância e imaturidade então
superadas, esquecendo-se que ele, John Lennon, foi John Lennon também e
principalmente por ter sido um beatle. A ex- esposa dele, Cynthia, também
foi ignorada.
Em 1970, na sua mais crua obra-prima Plastic Ono Band, LP cujas canções
foram escritas sobre os destroços de um compositor em busca de sua
simplicidade e gema bruta - destroços esses causados pela linha terapêutica
do grito primal - John escrevera a clássica God, quando declarou-se cansado
de carregar a pecha de ser um beatle, um mito, uma espécie de 'deus hippie',
cantando nos versos dessa canção que não acreditava em nada disso, nesse
'endeusamento' dos Beatles e de quem ou o quê quer que fosse. Nos discos
seguintes, principalmente nos que se consumaram durante sua separação de
Yoko, Lennon mostrava-se nú, desmistificando-se constantemente, confessando
a cada canção sua condição de simples ser humano falível, repleto de erros e
acertos, perfeitamente manipulador e manipulável ao mesmo tempo.
E essa sempre foi sua característica mais proeminente: revelar-se, falar de seus
dramas e confusões particulares, seja em suas canções ou em suas milhares de
entrevistas. John Lennon tinha consciência de suas incoerências e
antagonismos (ao protestar pela paz ele queria a paz, claro, mas lá no
fundinho mais recôndito do seu ser, ele também queria dizer: 'Olhem, eu sou
mais legal que Paul McCartney e Mick Jagger!'). como músico, era limitado na
guitarra e no piano, mas como dizia, 'fazia a coisa funcionar'. Como cantor,
possuía uma energia rock and roll peculiar, um tom de voz poderoso e um
timbre metálico, que como bem lembrou George Martin no documentário sobre o
Sgt. Pepper's, provocava calafrios pela forma como transmitia a exata
emoção que imprimia nos temas melódicos das músicas. Como compositor, John
era criativo, irriquieto, dotado de uma melancolia transcendental,
instigante, que sempre o conduzia à experimentos. Com sua paixão pelos sons
e seus efeitos (mais algumas boas doses de LSD) foi, ao lado do parceiro
Paul, um dos mentores do rock psicodélico e da transformação da música pop
em um estilo mais respeitado artisticamente, impregnando nela uma imponente
linha evolutiva.
Mas o que mais encanta em seu trabalho, até os dias de
hoje, é justamente sua simplicidade e o dom de trabalhar com o básico da
música, já que ele buscava em seu coração e em suas emoções o instrumental
necessário para transformar o formato do rock 'n' roll e do pop em incríveis
viagens aos mais íntimos de nossos segredos e lembranças (quer um tema mais
eloquente nesse sentido do que 'Strawberry Fields Forever' ou 'Mind
Games'?), criando lindas melodias ('Love', 'Girl') e também números ásperos
e estridentes quando fosse o caso ( 'I Found Out', 'I Want You'). Esse foi o
John Lennon que consquistou o mundo. O músico e compositor simples e genial,
brincalhão e emotivo, áspero e doce, alegre e sombrio. Como qualquer um de
nós. No dvd, entre os novos clips, há um que representa perfeitamente o que
quero dizer: 'Happy Xmas', faixa lançada por Lennon e Ono em 1971 e que
pedia na ocasião um natal sem violências, no qual imagens das guerras
daqueles tempos, a do Vietnã, e as atuais no Iraque e Afeganistão se mesclam
revelando a simultaneidade e a atemporalidade dos fatos, resultado da
multiplicidade das informações audiovisuais dessa nossa era maluca. Mas,
além de tudo, traz a igualmente simultânea e atemporal simplicidade da
mensagem do compositor John Lennon e de seus versos simples, cantados sobre
imagens verdadeiramente assustadoras e emocionantes, que nos fazem chorar,
trazendo-nos a constatação de que o mundo vai mal, cada vez pior, e que a
barbárie é aqui e agora, também.
Não há ali nenhuma imagem da intimidade dos
Lennon ou dos Beatles; não há o mito de John Lennon, mas sim imagens de
pessoas comuns, mortais e falíveis, vítimas de guerras insanas, acrescidas
do canto triste e ao mesmo tempo esperançoso da música que fala por elas.
Não há traduções ou construções simbólicas muito complexas, mas o choque da
vivência, do humano. E esse efeito, meu amigo, poucos artistas provocam, sem
que se faça necessário criar-lhes uma crosta mí(s)tica ou superficial.
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