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The Beatles
To be or not to beatle?
Por Marcos Fernando Kirst*
Eu, na verdade, sou um beatleman�aco tardio. Fruto, digamos, da "segunda safra" de contagiados pela doen�a Beatle, aquela que faz voc� despertar um dia para aquilo que descobre ser um conjunto genial de can��es e nunca mais conseguir deixar de escut�-las mais uma vez, e mais outra, e uma vez mais, e de novo, e... Bom, mas � isto: quando fui me dar por conta de alguma coisa na vida, os Beatles j� haviam se separado h� muito tempo e John Lennon j� tinha ido para o c�u. Mas tamb�m n�o surgi de um ovo e tampouco fui expelido aqui para baixo de repente pela descarga de um disco voador... O fato � que foi assim, �:
Eu vim ao mundo ainda na Era Beatle, ou seja, em 8 de julho de 1966, pouco depois do lan�amento do �lbum "Revolver", enquanto provavelmente John, Paul, George e Ringo se recuperavam da traum�tica estada nas Filipinas (quero crer que n�o foi por causa de Imelda que ganhei o nome "Marcos") e se preparavam para aquela que viria a ser a �ltima turn� da banda, que aconteceria em agosto, nos Estados Unidos. Ou seja: enquanto meus pais escutavam meus choros e gritos que destranq�ilizavam a at� ent�o pacata Rua dos Viajantes, a parte civilizada do mundo j� come�ava a se deleitar com p�rolas musicais que viriam a permanecer para sempre como "Eleanor Rigby", "Taxman", "Tomorrow never knows", "Yellow submarine", "I want to tell you" e outras. L� em casa, enquanto isto, tentava-se combater a faixa n�mero um do Top Ten da Fam�lia ("Marquinhos'screams") contrapondo as faixas de "Rubber Soul", conforme j� explicitado na cr�nica anterior ("Gu-gu d�-d� be-beatles").
Mas eu mal caminhava ou articulava frases quando o mundo maravilhou-se com "Sgt Pepper's", em 1967. Depois, passou-me completamente despercebido o lan�amento de um �lbum duplo com capa branca e, al�m disto, a �nica turn� m�gica e misteriosa que eu fazia era em meio aos meus carrinhos de chumbo Matchbox e junto ao porquinho de pano que levava comigo para receber vacina no posto de sa�de. Primeiro ele, depois eu, naturalmente. Devia ser "Piggies" j� ecoando subliminarmente em meu c�rebro, vai saber...
Quando cantaram "Let it Be" eu n�o estava nem a� e, quando o sonho acabou, no in�cio de 1970, eu tinha tr�s anos e meio e rec�m come�ava a ter capacidade para moldar os meus pr�prios sonhos. Fui crescendo e "Rubber Soul", o �nico disco (disco mesmo, de vinil, bolacha preta a ser beijada pela agulha) que eu tinha do quarteto, se acotovelava entre outros na prateleira, jazendo ali, in�cuo, inc�lume, ins�pido e inodoro. Cresci, alfabetizei-me, e assisti pelo Jornal Nacional a como��o mundial pelo assassinato de John Lennon, quando j� n�o me eram estranhas composi��es como "Give Peace a Chance" e "Imagine", mas n�o me uni ao pranto pela morte est�pida de um ex-Beatle. N�o naquela ocasi�o, pelo menos. Eu j� andava pelos 14 anos e me preparava para come�ar a formatar meu pr�prio gosto musical. Ganhava mesada e descarregava tudo em livros de Monteiro Lobato e de Agatha Christie, al�m de gibis dos super-her�is Marvel lan�ados aqui na �poca pelas editoras Bloch e Ebal. Mas, um belo dia, minha av� me deu de Natal um disco dos Secos & Molhados.
Ops! Minha av� me deu um disco dos Secos & Molhados!!!
Sim, mas p�ra�, isso foi bem antes, em 1974, quando eu tinha sete anos. Ela me deu o disco (minha av�! Me deu um disco dos Secos & Molhados!!! Os caminhos de Deus s�o inescrut�veis, todos sabemos disto, mas... putz... minha av� me dar um... bom, deixapral�...), aquele que tem na capa as quatro cabe�as pintadas e servidas em bandejas. A imagem me assustava e deixei o disco guardado, meio que escondido, por um bom tempo, para evitar pesadelos. Da�, ent�o, l� no final de 1980, vasculhando a prateleira dos discos depois da morte de John Lennon, encontrei este dos Secos & Molhados que minha av� havia me dado anos antes e coloquei-o na vitrola Telefunken para escutar. E gostei do que ouvi. Comecei a prestar aten��o no arranjo de abertura de "Sangue Latino" (o baixo e o chocalho abrindo a m�sica, as cordas que v�m do fundo e v�o crescendo, preparando a entrada da voz andr�gina de Ney Matogrosso...). Putz, aquilo era muito louco! Ser� que havia mais discos assim enfiados ali no meio, al�m dos disquinhos de historietas de Walt Disney, que j� haviam sido abandonados junto ao babeiro e � mamadeira?
Ser� que existiam por ali m�sicas como "Imagine" e "Give Peace a Chance", do John Lennon que havia morrido? Vasculhei todos os discos e n�o encontrei nada mais que me agradasse. O "Rubber Soul" estava l�, mas passou batido a estas primeiras audi��es ansiosas e desinformadas. Precisava, ent�o, dar uma destina��o mais ampla aos cruzeiros que compunham a mesada, al�m dos gibis do Homem-Aranha, das Ca�adas de Pedrinho e de O Caso dos Dez Negrinhos. Resolvi comprar discos.
E l� vieram eles: Abba, Boney M., Gengis Khan, trilha internacional da novela Dancin' Days... Uau! Mas, calma, n�o se desesperem, o final da hist�ria � feliz... Fui resgatado a tempo por um tio apenas sete anos mais velho do que eu que, em 1982, veio morar com a gente e trouxe consigo uma verdadeira parafern�lia musical: um aparelho de som modulado (at� ent�o eu s� conhecia tr�s-em-um), com equalizador, um par de caixas monstruosas e discos, muitos discos. Entre eles, "Let it Be"... As m�sicas misteriosas apreciadas por aquele tio invadiam o corredor e todos os aposentos da casa nas tardes quent�midas em Iju�, escapando por debaixo das frestas da porta do quarto que estava agora destinado a ele. E n�o � que as faixas daquele disco de capa preta com fotos de quatro cabeludos pareciam ter a mesma complexidade de composi��o que eu identificara pouco antes no Secos & Molhados presenteado pela minha av� (ali�s, m�e deste tio)? Que coisa diferente aquela "I've Got a Feeling"... e "Get Back", e "Two of Us"... Decidi que gostava daquele �lbum, e passei a desejar conhecer mais sobre a banda. Que se chamava... The Beatles! Mas� como? Ent�o eram os mesmos caras de "Rubber Soul", que a vida inteira estivera esquecido ali em casa, na prateleira dos discos?
Ver com outros olhos, escutar com outros ouvidos... A psicologia chama de "insight" o momento em que voc� percebe algo por conta pr�pria, o instante m�gico e inesquec�vel em que alguma coisa se elucida... Como podiam os mesmos caras produzirem sons t�o diferentes como os verificados em "Rubber Soul" e em "Let it Be?" E n�o � que aquele disco que era meu h� anos continha m�sicas t�o interessantes quanto as de "Let it Be" e as dos Secos & Molhados? "Michelle"... "Norwegian Wood"� "I'm Looking Through You"� Hummm� Havia um universo a ser descoberto ali....
O que mais existia entre aqueles dois �lbuns, o que viera antes deles e o que acontecera e ainda aconteceria depois... bem, foram estas as motiva��es que me levaram a come�ar minha trilha por uma estrada m�gica e misteriosa, em uma jornada repleta de sabores novos pelo inesgot�vel universo Beatle, que persiste e se renova at� hoje.
"Follow Me". N�o � isso, Paul?
* Marcos Fernando Kirst � jornalista, ga�cho, e tem dois tios que o resgataram a tempo do lado escuro da era "disco". E-mail: markirst@hotmail.com
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